sexta-feira, abril 27, 2007

Delmira


Ela não sabia quem era. Seu nome, sua identidade, origem. Como se, num instante, uma avalanche tivesse atropelado e atravessado seu denso corpo, agora leve. Uma avalanche de nada, um tufão de vazio; uma sensação de que a mente flutuava depreendida de todos os excessos, memórias de si e dos outros. Experimentava o vácuo, a brecha no tempo fora do tempo, fora de si. E quanto mais fora de si mais sabia o que era estar em-si, na profunda alegria de um si profundo, sem fora; sem nenhum fora a lhe nomear, sem nenhum fora a lhe chamar e lhe exigir. Por alguns instantes, ela experimentou a liberdade venturosa, aquela liberdade que só existe na radical inutilidade: eternidade que habita o intervalado entre o despertar e o acordar. Delmira dormira por 15 minutos após o almoço naquela tarde quente, como aliás era seu costume. Sobressaltada, agora já ouvia num crescendo o barulho das crianças e o ruído da cidade, amorfa massa sonora que começava a re-habitar seu quarto e a tomar posse de seu túmulo - amarelado pelas cortinas de cor ocre. Delmira renasceu. E pensou, sem se dar muito conta e ajeitando a alça do sutiã, que renascia todos os dias, sempre às 14:45h.



Ilana Feldman,

Abril, 2007