sábado, junho 12, 2010





Anti-semitismo: racismo politicamente correto?

Entrevista com Mirna Schatz/Anastácia Ferraz
por Ivana Mikva



Mikva - Você lançou seu primeiro livro nos Estados Unidos, em 1999, A morte do espírito (The death of the spirit, Ed. BlackBell), que chamou atenção da crítica pela ponderação e justeza das análises, em que aponta os principais limites ao desenvolvimento da reflexão filosófica no mundo contemporâneo. Por isso nos intriga tanto sua atitude radical mais recente. Por que você decidiu abandonar a herança judaica, trocar seu nome para Anastácia Ferraz e se iniciar no Candomblé?

Ferraz - Como Mirna Schatz passei a sentir-me, no plano do pensamento, alguém que anda invariavelmente em círculos ao tentar responder questões atuais importantes. Meu livro reflete esta angústia. Solicitavam-me sempre análises e posicionamentos sobre as questões israelo-palestinas. Por causa de minha história familiar, era tentada a envolver-me no debate. Mas, sobre este tema, jamais encontrava o equilíbrio ou uma direção para desenvolver o pensamento. Entre familiares, situava-me contra Israel; entre o público, a favor. Se atacava Israel juntando-me ao público, sentia-me cínica, como se lavasse as mãos em relação a algo que me comprometia e de que muito pouco tinha conhecimento para sugerir soluções concretas e responsáveis. Se defendia Israel junto ao público, sentia-me, com muito pesar, indiferente à questão Palestina. Enfim, minha profissão, a de filosofar sobre problemas sociais, políticos, culturais, tornou-se impraticável. Era impossível formular, rigorosamente, uma tese sobre o assunto. Sei, por um lado, o quanto a defesa da causa palestina pode implicar a ignorância dos objetivos declarados pelo Hamas e outros grupos, o que coloca não só o Estado de Israel, mas todos os judeus do mundo, numa cilada. Por outro lado, identifico-me com a dor dos palestinos e sua revolta alimentada pelas práticas sistemáticas dos governos israelenses. Isto tudo se tornou pesado demais. Ciente destas limitações, entrei em depressão, fiz um câncer, desejei livrar-me de mim. Estava no fundo do poço quando tive um insight. Percebi que não me faltavam elementos teóricos para ser capaz de abandonar-me, deixar de ser eu como quem despe uma pele e veste outra. Não me faltaria imaginação para inventar uma nova identidade. Tornei-me Anastácia Ferraz. Não se tratou, portanto, de uma fuga, como poderia ser um suicídio. Estou aqui, presente, ativa, criadora e criatura. Acreditei mais em mim que nas imagens que me eram impressas.

Mikva - Mas isto, de certo modo, não é fugir de um posicionamento político?

Ferraz - O problema é que, como disse, eu não tinha um posicionamento político verdadeiro. Eram sempre sentimentos e razões incongruentes que se manifestavam. Decidi que, ou eu mergulharia no problema tornando-me uma especialista, ou deveria deixar de ser eu. Percebi que a primeira escolha seria mais arriscada. Eu poderia apenas aumentar meu conhecimento sem conseguir ordená-lo. Os intelectuais não têm dores de cabeça à toa. Eles são constantemente policiados por eles mesmos e por seus pares. As palavras saem de suas bocas como massa que se desdobra, ganha autonomia, atinge ou se isola, torna-se cruel ou ridícula. Deixando de ser Mirna, penso como quem voa, pega ondas, faz manobras, jamais com pretensão de acertar. A fala de Anastácia não é um objeto cortante; tem a textura da vida, é algo que se mistura às coisas, às pessoas, às cores do dia e da noite, aos elementos da cultura e da natureza. Assim pude recondicionar meu pensamento, distanciando-me do que antes era próximo demais.

Mikva - O anti-semitismo venceu dentro de você?

Ferraz - (Silêncio). Esta pergunta é realmente difícil. O anti-semitismo estava me vencendo ao aprisionar minha percepção das coisas. Então, decidi vencer-me, vencer quem o anti-semitismo estava derrotando. Se eu continuasse Mirna, jamais me livraria dele. Não queria mais ver o mundo dividido entre judeus e não-judeus. Para mim, isto sim seria uma derrota intelectual e moral. Queria ter o olhar livre de quem parte de outro paradigma: politeísta e não-ocidental. Por isso o Candomblé. Eu não poderia adotar uma religião cristã ou islâmica que se apropriasse das criações judaicas de um deus único, de seus profetas e de seus textos, para negar os hebreus. Como se sabe, toda a civilização judaico-cristã-islâmica, em sua base moral e religiosa, divide o mundo entre judeus e não-judeus.

Mikva – Não será isso o mesmo que auto-exilar-se, viver como foragida?

Ferraz - Eu vivia, sim, como foragida; carregava a culpa de crimes que não cometi; o tempo todo media palavras, eufemizava, para não trair ninguém. E você, também não tem a sensação de esconder-se?

Mikva - Não pensou em resolver isso com análise?

Ferraz - Cansei de soluções convenientes e discretas dentro de um suposto “possível” que, em si, é estruturalmente inviável. Parti para um projeto novo, radical, precisei experimentar isso. Mudar é um projeto; não significa que terei êxito. Adotar outra perspectiva já é viver a transformação. Desejo me orientar pela transcendência, mesmo que Anastácia jamais se realize completamente, assim como Mirna nunca se realizou. Anastácia será sempre um horizonte, um além-mar.

Mikva - Às vezes penso que o anti-semitismo talvez seja o único racismo “politicamente correto”. O que se diz hoje dos “judeus”, que eles são muito ricos e controlam tudo, é o mesmo que se dizia na Alemanha nazista. Há professores ensinando isso nas escolas, intelectuais bem formados argumentando coisas deste tipo em discussões públicas.

Ferraz - Este é outro ponto problemático. Ir contra o anti-semitismo hoje, inclusive no Brasil, não é, de fato, partilhar de uma mesma moralidade dita “politicamente correta”. Os judeus não são mais lembrados nas discussões sobre o racismo como ainda eram até os anos 60. É como se a questão estivesse resolvida. Não está. Há sempre um anti-semitismo marolando no ar. É um racismo que exalta os judeus. O senso comum espera que os judeus dêem mais que recebam, como se fossem moralmente superiores, como se tivessem realmente mais para dar que os outros, como se fossem destinados ao sacrifício. Jesus caiu nesta armadilha. Os judeus se apropriam destas representações e, assim, dão-lhes mais força. Um dos resultados, por exemplo, é chamar de “holocausto”, isto é, “sacrifício”, o genocídio contra os judeus. Mesmo as generalizações sobre a “inteligência” ou a “esperteza” dos judeus são um preconceito racista, pois pressupõem que eles sejam ameaçadores. Até pessoas muito cultas sustentam a clássica idéia (sem qualquer comprovação empírica) de que os judeus são unidos e se protegem mutuamente. A história mostra de forma objetiva que não é nada disso. Seis milhões morreram na Guerra, muitos escaparam, vários receberam ajuda de não-judeus, vários trabalharam para a SS. Os judeus são simplesmente iguais a todo o mundo, e isto não deve soar como um pecado.

Mikva – Ao entrar no Candomblé, não se deparou com outro tipo de racismo?

Ferraz - Sim, mas aí tenho companhia para pensá-lo. Os afro-brasileiros chamam de racismo o que sofrem, enquanto os judeus não admitem para eles mesmos que são vistos como “raça”, como etnia que guarda características particulares e que este é um pensamento racista sobre os judeus. Chamam de “anti-semitismo”, mas “semitas” são todos os árabes, é um termo que não diz muita coisa.

Mikva - E por que não tentou mobilizar as comunidades judaicas contra o racismo?

Ferraz - Ora, se as “raças” não existem na realidade, eu não preciso mobilizar “os judeus”, apenas participar de qualquer grupo que lute contra o racismo. O importante é ir contra o conceito de “raça” que é uma construção coletiva racista, independente da identidade cultural que se possa adotar.


12 de junho de 2010
Criação de Samira Feldman Marzochi