Sobre Isso
Naquele dia, conversando com você, vi uma coisa dentro. Foi porque decidi
retirar as telhas, o forro, o reboco, os tijolos, o assoalho, e deixar só a
estrutura: a fundação, as colunas e as vigas. Ao suspender a fundação, eu vi. Mas curioso que, durante o trabalho, chamei de “mastro” o que
havia tomado por “viga”. Mastro é o eixo que sustenta as velas, e as velas
inflam a embarcação, fazem que ela deixe a condição de deriva e seja capaz de
orientar-se. Então, fiquei entre o desenho da casa e dos
barcos.
De fato, eu moro num barco, casas e barcos são equivalentes, e também
contêm armações que não podem ser suprimidas ao prejuízo de um desmoronamento.
Pensei no verbo manquer, em francês,
faltar. Il me manque quelque chose. Soa “mancar” em português, uma ausência que faz mancar sugere uma
estrutura que sustenta. Mas o que me ocorreu ontem, na escuridão da estrada,
e me impeliu a escrever, foi a imagem do que havia encontrado no fundo.
Era um líquido feio, pastoso, semelhante ao petróleo. E não me admira que
assim fosse, embora assombre e cause repulsa. O petróleo é combustível,
inflama, mas é também a concentração de todos os tempos orgânicos da Terra, tem
a idade da vida extinta, além de morta. Algo que não se sabe mais se é morte ou
vida e, ainda assim, pulsa. Todo o empenho da cultura talvez seja por tornar
essa coisa palatável, forjar um espaço de aceitação para ela que, em si, é o
horror.
Essa pasta pegajosa estava também no porão do barco, e queimada liberava
um cheiro desagradável misturado à maresia, ao pescado, ao suor dos corpos.
Enquanto as redes brilhavam e as águas ofuscavam a visão, havia o motor, o
tremor que emergia do subterrâneo, do fundo do mar e do solo. Um motor de “tantos
cavalos”, se diz. Como daquela vez em que percebi, ainda criança, na trilha da
fazenda, que o medo de galopar não vinha do galope, mas do desencontro entre a
minha vontade e a do animal, e, ao mesmo tempo, do encontro.
Chegando à cidade onde tudo flutua, não há como esquecer quem vive nas
ruas e passará a madrugada de inverno à deriva. Vidas mortas que deambulam nuas,
sem velas, numa fantasia invisível, como essa que eu visto e me esconde sob o
jeans e o cachecol. Foi importante encarar essa coisa dentro, ao menos uma
parte dela. Não é fácil ver tudo porque o desmonte é doloroso e não basta. É
preciso sustentar o olhar, em exame, e ir de encontro à cultura.
O palácio de colunas em forma de mulheres, em que cada uma inaugura um
salão, como se fora o único, entre águas deslizando em mosaicos e drenadas por delicados
canais, a Alhambra de um sonho, é só a parte mais sólida e monumental de todas
as camadas interiores. Não foi preciso destruir nada, definitivamente, e eu não
o faria. Apenas desmontar e montar outra vez, na trilha da fazenda.
Lua Arroyo
São Paulo, 23 de maio de 2018


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