sexta-feira, março 16, 2018


Tânia Schneider: O Continente Negro da Linguagem

Entrevista por Tomás Leonel


Professora Tânia, você acaba de lançar um livro muito bem recebido pela crítica intitulado “O Continente Negro da Linguagem” no qual, dizem seus leitores, “a Mulher é finalmente descoberta”. Como você conseguiu algo que nem Freud, nem Lacan, até o fim de suas vidas, conseguiram?

É muito simples, não escrevo nada que estes autores já não tenham dito de diferentes maneiras, tampouco os questiono. Meu trabalho é uma confirmação das teorias sociais preexistentes. Mas lanço mão da literatura nacional, dos poemas, romances e canções populares, como material de análise para desvelar a “mulher”. Os leitores se impressionam porque os poemas são líricos, comoventes, e são apresentados no livro de modo a sugerir uma outra interpretação de textos que lhes são familiares. Além disso, o tema contribui, e estes críticos, aos quais você se refere, são meus amigos; é natural que eles me sobrevalorizem.

E o que diz a literatura sobre a Mulher?

No campo literário, os escritos sobre as “mulheres” dizem muito mais sobre aqueles que escrevem sobre elas. Por isso é possível afirmar que, embora “a mulher” seja meu tema, escrevo, na verdade, sobre o inconsciente. Meu objeto, em última instância, não é “a mulher”. Quando releio Machado de Assis, por exemplo, tomo Capitu como o inconsciente de Bentinho. Tudo o que Bentinho vê em Capitu, sem dar-se conta, é ele mesmo. Capitu oferece uma espécie de massa de modelar para o inconsciente de Bentinho que a faz tomar a forma de seu desejo. O desejo de traição, por exemplo, de obliquidade, de desvio, é dele. Capitu encarna uma história passível de ser narrada, um enredo a ser vivido. Daí concluo que, tal como o inconsciente, a “mulher se estrutura como linguagem”.

Mas isso valeria apenas para o campo literário?

De modo algum. Estas representações literárias se enraízam na cultura, elas apenas têm força porque encontram lugar na vida cotidiana. A diferença é que a literatura é capaz de conservá-las como memória coletiva, mas a mesma análise poderia ser feita sobre a fala diária das pessoas.

Você, então, concordaria com a frase “a mulher não existe”?

É sempre delicado trabalhar com teoria em ambientes que abandonaram a curiosidade científica ou a paixão pelas ideias e se renderam à militância. Há a sensação de que o pensamento não é mais possível. Esta frase, por exemplo, pode ser absolutamente mal interpretada se for tomada "ao pé da letra".  Pior ainda se eu quiser complementá-la com outra: “se a mulher existisse, não seria mulher”. Em um ambiente machista e ignorante, a afirmação pode realmente soar como autorização ao feminicídio, mas é claro que não se trata disso. O que quero dizer é que a demarcação do que seja “a mulher” é cultural, está no plano das representações. E a representação da “mulher” opera, ao menos nas culturas ocidentais, desde as “musas”, como projeção do desejo. Embora eu não diga o mesmo que Lacan, autor da frase, busco mostrar que a "mulher" não existe porque não é uma substância, uma essência, um dado natural que, necessariamente, engloba todas as pessoas que nasceram sem pênis. Sei que partir do pressuposto de que existe esta substância comum é uma necessidade dos movimentos feministas, caso contrário, não poderiam falar pelas "mulheres". Mas, todos sabemos que, empiricamente, não há unidade entre estes indivíduos e nem todos se identificam com os lugares sociais destinados às "mulheres", mesmo sendo heterossexuais, pois são lugares demarcados pelo desejo e olhar de outro que elas incorporam como se fossem os seus. Por isso não posso partilhar da ideia de que a mulher esteja no "real", fora da linguagem. O que há no real são indivíduos singulares, enquanto a mulher é uma categoria, um discurso, está no plano do simbólico e, portanto, do inconsciente. O mesmo valeria para os "homens". Por que não?

A mulher estaria mais para “continente” ou “buraco negro”?

Você deve estar se referindo à entrevista anterior (risos). Neste caso, a mulher está mais para “continente” porque, como representação, ela ocupa um lugar preciso nos mapas de orientação das condutas. A “musa”, a “fada”, a “ninfa”, a “virgem pura”, a “feiticeira”, mesmo a “bruxa”, são referências fortes para a explicação e justificação de certas atitudes, escolhas, paixões. Elas aparecem de diversas maneiras na mitologia do ocidente. No entanto, quando os indivíduos se permitem subsumir pelas representações, elas funcionam como um “buraco negro” realmente. Esta seria a diferença entre “apropriação” e “incorporação”. Quando nos apropriamos das representações, elas nos servem de orientação; quando as incorporamos, somos comandados por elas.

E de onde vem todo esse poder feminino?

Precisamente do fato de que as mulheres não existem. A imagem da mulher nunca se encaixa perfeitamente nas mulheres reais e é essa inconsistência, essa contradição, que assegura seu poder encantatório. Se há alguma descoberta em meu livro, é a de que o encanto, o poder simbólico, emana sempre de um descompasso, de um vão entre a representação e o real. É por esta ausência que os milagres acontecem. A "mulher" como tema e o inconsciente como objeto me permitem compreender o mecanismo pelo qual o mundo simbólico produz, sobre nós, efeito de realidade.