sábado, fevereiro 16, 2019


O DESEJO E OS MITOS


Entrevista com John Whitecraft
Por Emma Soller (especial para a Frincha)


Professor John, neste seu novo livro, publicado pela Blackbell, em três volumes, você recupera a mitologia grega, subsaariana e ameríndia, os textos religiosos judaico-cristãos-muçulmanos, as teorias da física, da matemática, das ciências sociais, da psicanálise, as ideologias políticas, e mesmo a literatura, a música, a poesia e as artes plásticas, para demonstrar que todas essas narrativas possuem uma função: justificar, para os indivíduos, a impossibilidade de realização do desejo. E você considera, ainda, que daí adviria a pertinência social e a perenidade dessas criações...

Sim, é isso mesmo; toda essa produção simbólica, em última instância, desempenharia o papel de um “conformismo lógico” que ameniza o sofrimento individual gerado pela consciência das impossibilidades. Trabalho com o pressuposto de que, embora seja a sociedade a criadora de tudo isso, essas “narrativas”, como você bem denominou, apenas perduram porque têm um sentido fundamental para os indivíduos; e o significado profundo, o verdadeiro motivo que os faz inventar e acreditar neste mundo simbólico, a tal ponto de se tornarem dele dependentes, de sentir que não existem sem ele, é que este tecido de histórias e imagens, de explicações, conceitos, noções, palavras e sons, tornam suportável o fato de que, a rigor, os indivíduos estão sozinhos, de que o mundo não é perfeito e de que o futuro será apenas uma variação do presente.

E as teorias revolucionárias, como a de Marx, ou psicanalíticas, ao exemplo de Freud? Ambas se propõem afastar a religião, as superstições, os preconceitos, para explicar cientificamente, desvendar a realidade.

Boa pergunta, Emma. Trabalho com a ideia mertoniana de propósitos conscientes, declarados, manifestos, em oposição às funções inconscientes, não declaradas, latentes. Lévi-Strauss dizia que as ideologias políticas são as mitologias da sociedade moderna e que Freud era um inventor de mitos. Aliás, Lévi-Strauss foi, no início de sua formação, um jovem marxista e depois se afastou da política. E sobre a psicanálise, conclui que ela exerce, nas sociedades modernas, a mesma função que o xamanismo: faz com que a cura se dê pela recuperação e restituição de uma ordem simbólica que, por algum motivo, esteja cindida.

Mas sua obra leva estas críticas às últimas consequências...

É verdade, sigo adiante apropriando-me dos conceitos de “sentido”, “motivação” e “legitimação” de Weber [pausa para um gole de água]. O fato é que Marx tinha, realmente, preocupações revolucionárias; ele pretendia, a partir de Hegel, entender o movimento da história para orientar a luta proletária em direção a uma sociedade emancipada. Minha pergunta é: de que modo a teoria marxista se enraíza no inconsciente coletivo a ponto de superar o tempo, ainda que todos tenhamos consciência de que a sociedade comunista, posta naqueles termos, jamais se realizará? E, no caso de Freud, o que permite que explicações tão malucas sobre o amor, por exemplo, ganhem crédito, se todos sabemos que, simplesmente, para o amor não há nem nunca haverá explicação?

Minha tese é a de que, embora em formas subversivas, estas ideias adquirem pertinência social justamente porque produzem efeitos conservadores: no caso de Marx, o materialismo histórico convence o indivíduo de que, numa sociedade capitalista, a emancipação individual e coletiva é inviável, de que ele está destinado a explorar o trabalho alheio ou ter o seu tempo de trabalho expropriado, de que as relações sociais jamais serão puras e desinteressadas, mas mediadas pelo capital etc. No caso de Freud, as teorias do complexo de Édipo, da transferência, do narcisismo, da identificação, das perversões, das pulsões, da castração, servem como espécie de consolo para a impossibilidade de realização do amor como relação de plena correspondência; para que o indivíduo perceba que, embora solitário, ele não está sozinho na solidão.

Então, em outras palavras, as ideologias, teorias, mitologias, são criadas e sustentadas porque vão ao encontro de necessidades individuais profundas de aceitação da realidade?

Exatamente. Este seria o verdadeiro “sentido” das mitologias; é o que “motiva” os indivíduos a conferir a elas “legitimidade”, a criá-las, garantir que ganhem vida e sobrevivam. Por isso o título de meu livro, “O Desejo e os Mitos”. As formas de compreensão e explicação da realidade amplamente aceitas, as de caráter religioso, artístico ou científico, e que persistem no tempo, são, precisamente, aquelas que ajudam os indivíduos a se conformar com a impossibilidade de realização do desejo: seja de amor, de liberdade individual, de emancipação coletiva, de igualdade etc.

Para encerrar, gostaria de lhe fazer ainda uma pergunta. Contam que o insight para este livro se deu numa de suas visitas ao Brasil, quando sua amiga lhe apresentou e traduziu a letra de uma composição de Chico Buarque, “Qualquer Canção”. É verdade?

Sim, é muito linda esta composição. “Qualquer canção de dor, não basta a um sofredor, nem cerze um coração rasgado. Porém, ainda é melhor sofrer em dó menor do que você sofrer calado” [cantarolando]. Diz tudo, não é? Quando ouvi, pensei: está aí toda a antropologia. E a melodia também é magnífica. Desde então, coloquei-me este objetivo, escrever sobre a tese desta canção. Posso afirmar que a hipótese de meu livro não é propriamente minha, mas tem a coautoria de Chico Buarque.  

Muito obrigada, Professor John, foi um prazer.

O prazer é todo seu, Emma... Oh, desculpe, é todo meu! [risos].