Marta
Os ombros sempre pesavam-lhe a vista.
Era tão difícil ver, vi-ver, caminhar livremente, com a mente leve e tranquila. Pois os ombros pesavam-lhe os sonhos e reduziam as capacidades de deriva. Não que Marta fosse daquelas pragmaticamente orientada. Até perdia-se na paisagens urbanas, nos viadutos engarrafados, nos olhares de soslaio para passantes ensimesmados e trabalhadores ambulantes. Nesses momentos, nesgas de sol, perfis de velhos, mãos firmes segurando corpos pesados e carregados no interior dos ônibus, os olhos de Marta deambulavam. Mas, estava cada dia mais difícil ver. E perder-se.
As dores nas costas, as enxaquecas cotidianas e com hora marcada, tantas preocupações ordinárias, tanto o que fazer e o que prover. O ônibus era então seu momento de repouso. Fechava os olhos e concentrava-se no vazio, que podia ser o som ambiente em sua pura forma, sem nada significar. Às vezes o cansaço era tanto que o estratagema de Marta fazia-se inútil... Adormecia. Mas nunca sonhava. Quando voltava à vida, através do choro da criança, da reclamação do homem, da freada brusca ou de um sem número de buzinadas dos carros à volta, suspirava com alívio: apesar de tanto peso da vida, ainda tinha aquele mundo para voltar.
Certa noite, numa chuva intensa, os vidros fechados, embaçados, o ar úmido e, ao mesmo tempo, árido, Marta, com dores nas costas e enxaqueca que já durava dois dias, adormeceu no segundo ponto da terceira curva. Desta vez, tanto sonhou que demorou para voltar. Quando despertada por uma mão úmida e áspera, percebeu que chegara ao seu destino: correu em dasatino, os grampos caídos, os olhos que olham e ainda nada vêem, apenas a saída, pragmaticamente orientados pelo instinto. Marta esqueceu-se - pela primeira vez esquecia algo - de sua sacola verde-musgo aos pés do banco molhado. Na sacola, nunca mais recuperada, deixou, junto ao caderno de afazeres, ao estojo de higiêne e à bolsinha de remédios, suas preocupações doloridas e dores ordinárias.
Ilana Feldman
22/05/2006


1 Comments:
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