terça-feira, agosto 01, 2017

Gênero e amor extraterreno: um novo campo de estudos etnográficos

Entrevista com Robert Martius


Por Dália Dantas


Robert Martius, antropólogo internacionalmente reconhecido da área de estudos de gênero e tecnologia, desbrava um novo e denso campo de pesquisas: o das relações amorosas entre humanos e seres extraterrenos. Professor em Harvard, teve sua formação na Universidade de Auckland, Nova Zelândia, e no CNRS, em Paris. Suas pesquisas etnográficas dividiram-se, inicialmente, entre as comunidades andinas e de cientistas da Nasa. Recebeu, em junho, o prêmio Rockefeller da categoria “Pioneiros da Ciência”, mas se recusa a proferir conferências para as quais recebe incessantes convites, sob o argumento de que as palestras são formas autoritárias de divulgação científica. Segundo Martius, “ninguém mais escuta aqueles que nos tomam como interlocutor genérico”. Inspirado nos antigos filósofos, prefere o diálogo e pouco se preocupa com a produção bibliográfica. Nunca publicou livros ou artigos, senão as notas de aulas organizadas por seus orientandos e as inúmeras entrevistas concedidas, exclusivamente, de modo presencial.

Dantas – Professor Martius, em primeiro lugar agradeço imensamente sua gentileza em conceder esta entrevista. Gostaria de começar perguntando sobre seu percurso intelectual. Das comunidades andinas, passando pelos cientistas da Nasa, como foi a jornada até a etnografia das relações amorosas, especialmente de cunho sexual, com extraterrestres?

Martius – Dalia, sou eu quem agradece. Você sabe que é nestes momentos, em diálogo, que produzo de fato conhecimento. A verdade é que sou um empirista da palavra e levo muito a sério a metodologia científica. Comecei pesquisando a relação da população de Nazca com os famosos geoglifos. Minha intenção não era solucionar o mistério sobre eles, mas entender o que representavam para a população local. A partir daí, fiz uma comparação entre os relatos dos peruanos daquela localidade com as narrativas de cientistas da Nasa sobre o que significava, para eles, as imagens da Terra tomadas por satélites. Descobri que, nos dois casos, no momento em que falavam sobre os desenhos de Nazca ou sobre as imagens da Terra, assumiam uma perspectiva extraterrena que também fazia parte de suas vidas cotidianas, como se estes deslocamentos os fizessem sofrer uma transmutação existencial, um alargamento subjetivo.

Dantas – E como chegou à pesquisa sobre relações sexuais extraterrenas?

Martius – Daí foi um passo. Interessaram-me, posteriormente, os grupos de ufólogos de Goiás, região central do continente sul-americano. Entre tantos relatos interessantes, chamaram-me atenção as narrativas sobre relações sexuais com extraterrestres. Esforcei-me, então, para estabelecer vínculos entre minhas conclusões anteriores e estes novos estudos etnográficos, e descobri que o alargamento subjetivo estava também presente, porém de modo ainda mais claro. Este ponto virtual, em que se colocam os habitantes da região de Nazca ou os cientistas da Nasa, para observar a Terra, era a perspectiva da auto-observação afetiva. Digamos que este ponto, que é um “outro” imaginário construído para o deslocamento da perspectiva, seja passível de enamoramento.  

Dantas – Então, estas relações sexuais não eram verdadeiras, mas imaginárias?

Martius – Elas eram tão verdadeiras quanto todas as relações. Mas, o que me interessava, era a narrativa sobre elas.

Dantas – E como eram?

Martius – Eram exatamente narrativas sobre deslocamentos de perspectiva amorosos. Das dezenas de questionários que apliquei entre pessoas indicadas pela comunidade de ufólogos de Goiás, 90% relataram que estas relações se deram de forma passiva, sem agitação de corpos ou mesmo com pouca ou nenhuma aproximação física. Eram, em 70% dos casos, mediadas por instrumentos tecnológicos desconhecidos que produziam ou não algum tipo de som. Em 97%, eram os terráqueos que se deitavam enquanto os extraterrestres se punham em pé. E, repare: em 100% das respostas, havia alguma associação entre o “olhar” e o “orgasmo”. Porém, quando o questionário perguntava como eram os olhos dos extraterrestres, apenas 34% sabiam responder, pois o "olhar" era, sobretudo, uma sensação que se aproximava do sentimento de ser compreendido.

Dantas – Mas o que o faz entender estas descrições como “relações sexuais”? Elas me soam mais como cirurgias.

Martius – Estes casos me foram trazidos como “relações sexuais com extraterrestres”. Não fui eu quem os classificou assim. Mas você intuiu bem, eram cirurgias. Estas pessoas entendiam o amor como uma cirurgia do olhar. Algo que as revelava e produzia um bem-estar incomum, uma profunda leveza. E mais: o que elas me descreviam não eram as relações em sua dimensão real, corpórea, difícil de significar, mas as “sobre-relações”, aquela dimensão do amor que paira como realidade de segunda ordem e que, esta sim, estaria na dimensão da palavra.

Dantas – Foi então que partiu para as discussões de gênero?

Martius – Sim, esta descoberta foi um marco de minha entrada no campo de estudos de gênero. Todos os relatos, para ser exato, 97% dos entrevistados, não identificaram nestas relações nenhum tipo de gênero feminino ou masculino. Quando eu perguntava “você acha que fez amor com um homem ou com uma mulher extraterrestre?”, 97% não sabiam responder. Mas eram frequentes as narrativas sobre a sensação de estar sendo observado no bom sentido, de ser reconhecido, e esta sensação se confundia com o sentimento amoroso. Estes casos revelam que a diferença de gênero não era a condição do amor, mas o reconhecimento, e que as diferenças de gênero apenas são diferenças quando permitem este deslocamento do olhar sobre si a partir de um “outro”. Eis aí a chave para um novo entendimento do conceito de "gênero". 

Dantas – Ao que parece, professor Martius, seu objetivo é, no fim das contas, entender o amor.

Martius – Sempre é, Dália. Provavelmente, é o seu também (risos).