segunda-feira, maio 07, 2007

A Fenomenologia Transcendental dos Sons

O guitarrista Marcel Rocha apresenta seus poemas inéditos à FRINCHA




SAGITÁRIO I


Por dentro a corrente que se prende e projeta-se de encontro à superfície às vezes muito densa
Então um som é criado como querendo atingir um equilíbrio nunca estático e provavelmente impossível
Da assunção de seres interiores gerados desta tensão, cria-se um mutante alvo eterno e etéreo onde o arqueiro sempre erra o tiro.

Ainda assim, do arqueiro-vigiliante interior apenas uma ordem:
“── Atirem setas!”



(24/10/1994)




INVERNO

Move-se rígido o movimento de arrastar-se
Sobre a lama-névoa que escorre indiferente
Incômodo de perceber-se quase sóbrio
De correntes frias que, se não brotam, passam por dentro

O Sol alto mas não quente:
Raios de neve sobre o dia ausente.


(07/10/1994)




O LIVRO CHINÊS DA MINHA PROFESSORA DE FRANCÊS


Minha professora de francês falou uma vez que o que eu sabia não era pouco
Mas não era o pouco que se deve aprender
Ela disse certa vez que havia um certo livro chinês que sabia o pouco e não dizia nada
Mas era o pouco que se deve aprender

Eu tentei entender que se demora pouco se não se tentar entender
Eu tentei entender que se demora muito se tentar-se entender

Minha professora de francês falou de uma vez aquilo que eu queria saber
Mas não era o pouco que eu devia aprender
Ela disse uma vez que mesmo que falasse disso um mês
Não diria nada do pouco que se deve aprender

Então tentei em francês o que se demora muito mesmo em português
E vi que, mesmo em chinês, quando se tenta só perde-se a vez.



(14/06/1994)





ONTEM NA RODOVIÁRIA


Estou no meio de uma rodoviária com a passagem comprada e alguns me aguardando em outra cidade.
Incontrola-se em mim o impulso traduzido no desejo de vender a passagem.
Olho para os vários rostos dos tantos unidos aqui.
Meu olhar é de consulta a estes ministros de um destino ou d’uma vontade natural e universal.
Interpreto nas faces o real desejo de romper-se.
Vendo a passagem.

(...)

Volto a sentar-me nas poltronas de espera.
Agora já está começando a transmutação da situação: sento em poltronas de esperar horários de partidas de ônibus sem esperar horário de partida de ônibus.
Este foi o primeiro passo.

(...)

Lembro-me de ver um salão de barbeiros.
Corto a barba e quase todo o cabelo.
A transmutação começa a ganhar corpo e rosto.

(...)

Passa a adotar em relação à multidão uma nova atitude e um novo olhar.
Olho para cada um ao mesmo tempo com aparente desinteresse e desejo de sentir suas histórias, seus pesos e temores, paixões e anseios.
No momento não sinto receio de nada. Deixo as horas escorrerem em mim.

(...)

Olho para fora e vejo sobre uma igreja uma estátua de provavelmente três metros com os braços abertos à cidade contra um fundo cinzazul de céu quase chovente.
Por alguma razão lembro-me de alguma sensação de sonhar estar voando, em movimentos de mergulho.

(...)

Volto a sentar-me nas poltronas.
As pessoas se revezam no ato de estarem à margem de minha existência.
Porém, depois de algum tempo, percebo repetições. Várias pessoas retornam em outras vestes e outros corpos.
Isso vai me nauseando aos poucos...
Deixo para trás a rodoviária e a imagem de três metros...




(15/12/1994)




Poemas de Marcel Rocha

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

lindo, profundo e brincante, ao mesmo tempo, rocha, ainda me surpreendes, no bom sentido! beijos!

quarta-feira, 09 maio, 2007  

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