Quatro contos de Ilana Feldman
Geísa
Dali a dois dias faria 29 anos, pensava enquanto reparava que suas unhas vermelhas começavam a descascar; dali a dois dias faria 29 anos, pensava novamente, agora passando o pote de iogurte light no luminoso feixe registrador; dali a dois dias faria 29 anos, e a madame de batom vermelho lhe sorria. R$ 75,00. Débito ou crédito? Débito. Dali a dois dias, pensava.... Obrigada. Nada. Uma boa semana pra você. Brigada. Pensava que faria 29 anos, e tentava pensar como seria aos 30, se ainda estaria trabalhando ali, registrando preços dos produtos que virariam refeições, lanches e cafés da manhã para tantas boas famílias. Tentava pensar se também um dia faria a sua, mas seus pensamentos em palavras nunca avançavam muito. Eram sempre números, sorrisos, caras feias, reclamações, auto-falantes e produtos e mais produtos a lhe interromper o fluxo. Já pensava que não conseguia mais pensar um pensamento seguido por... R$ 635,41. Débito ou crédito? Crédito. E assim ia. E quando havia esquecido completamente de seu aniversário, dali a dois dias, passa um rapaz do olhar fundo com uma compra de R$ 29,00. Geísa voltou a se lembrar, mas imediatamente tornou a esquecer. Agora eram os olhos do rapaz... E envergonhada das unhas descascadas, perguntou se era débito ou crédito desautomatizando o gesto.
Ilana
9/05/07
Fátima
Planilhas, custos, metas, estratégias, projetos... Planilhas, números, custos, números, metas, inúmeras, estratégias e projetos, um sem número. A vida começava a lhe custar caixas e caixas de pastas, papéis, disquetes, CDs, arquivos mortos e comprimidos analgésicos. A vida começava a lhe custar uma enxaqueca sem trégua e sem intervalo. E Fátima já se tornava um arquivo vivo de informações inúteis, como dados, planilhas, custos, metas, estratégias e tantos projetos. A vida se transformava num grande intervalo, entreato entre as incertas projeções da juventude e a certeza da finitude. Quando jovem, Fátima planejou a vida como quem controla uma planilha de custos, metas, estratégias e projetos. Aos 17 projetara o sua. Aos 20 já tinha plano de previdência privada. Aos 22, fora contratada por um grande escritório da contabilidade, onde estava até hoje, aos 51 anos. Dali a um, faria trinta anos de casa, vangloriando-se de nunca ter sido demitida nem rebaixada. Dizia, com alegria de canto de boca, que sua situação era “jurássica”, que essa condição empregatícia não mais existia. Mas preferia não se perguntar se era mesmo uma afortunada. O fato é que já há alguns anos as mãos de Fátima não faziam outra coisa que contabilizar o imposto de renda alheio devido. Pessoas físicas e jurídicas a procuravam. Devedores, retardatários, caloteiros, larápios, procrastinadores, adiantados, obsessivos, incorruptíveis, maníacos ou simplesmente esquecidos. E as grossas mãos de Fátima, firmes, contavam centavo por centavo, calculavam montante por montante e por vezes explicavam às pessoas físicas e jurídicas como funcionava a taxonomia das taxas, tarifas, impostos e planilhas. Fátima não era de sonhos e derivas. Quando sonhava era como uma algaravia algorítmica: números, custos, declarações e formulários de caras enfastiadas de pessoas – das físicas e jurídicas a artistas e celebridades de revista. Procurava ser prática. Porque todo o resto, pensava, trazia muito infortúnio, dores nas costas e nenhuma “alegria quantitativa”. Mas, secretamente, Fátima sabia que suas mãos traziam uma vocação ancestral e praticamente oculta: ao fim de cada dia espalmava como ninguém a planta dos próprios pés e, ao massagear as extremidades, dedo por dedo, sentia o prazer incomensurável do nada que vem antes do 1.
Ilana
17/05/2007
Clélia
Naqueles dez minutos que separavam sua casa da clínica no Catete, Clélia não sentia outra dor que a agonia de não conseguir mais respirar, de não conseguir mais respirar sem ter de pensar que era preciso respirar, que era preciso reunir todas as suas forças para realizar um movimento até então involuntário e inconsciente, que era preciso lutar, lutar conscientemente por cada lufada de ar, por cada entrada e cada saída, logo ela, que nunca havia lutado muito por nada, a não ser pela própria vida. Sua sobrevivência lhe havia consumido 7 décadas, 4 anos, 8 meses e alguns parcos dias, mas naquele momento definitivamente não pensava no que fora sua vida, não sentia nem magoas nem remorsos, apenas tentava concentrar-se, tomada pelo pavor, no dolorido movimento de seu diafragma e em sua física dor, que já se alastrava, do plexo solar, a toda caixa torácica, engolindo os músculos interiores e a exterior camada de sua pele ressecada. Inerte, muda, toda contraída e instalada no banco do carona, Clélia chegou a pensar, quase desprovida de pensamento, que tudo o que podia fazer era tentar manter naquele momento a integridade de seu corpo, o funcionamento de suas vias respiratórias e algumas esparsas e esporádicas memórias. Sentia agora, já sem grande desespero, que o vento frio que lhe ardia o rosto, naquele domingo cinzento e sombrio, poderia ser o último; que o cheiro do velho Corcel, que fora do falecido marido, poderia nunca mais ser sentido; que o silêncio do Centro aos domingos, quem sabe, não seria mais ouvido e que as lembranças do netinho Francisco, tão forte o bichinho, poderiam para sempre se dissipar na ausência de ar. Já na porta da Clínica, em silente agonia, Clélia não pediu nada a Deus nem aos seus. Enquanto seu corpo reagia a que o tirassem do interior do veículo, não amaldiçoou sua resignada dor e pensou - inspirando o ar sofregamente - que, se tivesse de realizar um desejo, o que mais queria era mastigar avara e desesperadamente um Serenata de Amor.
Ilana
27/05/2007
Lucíola
Não havia uma única noite em que não acordasse na madruga para sorver, ávida e cheia de ânsia, um grande naco de doce. Valia de tudo. Nescau puro, goiabada guardada, bolo da semana e o que mais pudesse satisfazer, ainda que momentaneamente, sua intempestiva insaciedade. Mas não era Lucíola quem comia, era seu corpo, sonambúlico, impulsivo, que levantava em alerta e partia como uma flecha em direção à cozinha. Abria armários, geladeira, compartimentos e tapewares como quem procura um objeto precioso, um segredo ou um tesouro; como quem procura alguma profanação, não sem recompensa, naquele território mágico e misterioso em que se transformava, durante as madrugadas, a mais familiar parte da casa. Quando acontecia de Lucíola dar-se conta de seu secreto feito, já era tarde e estava novamente sob a coberta e cercada pelos excessivos travesseiros de seu leito. Agora, poderia dormir tranqüila, despreocupada e pesada como um animal saciado, pois aquela cotidiana e noturna transgressão era sua íntima promessa de um corpo apaziguado. Durante o dia, a mãe, discreta, lhe dizia, com a voz já gasta e o couro velho do chinelo a estalar enquanto brejeiramente se movia: “Você devia ter nascido Dulce, dulcíssima, como eu queria, mas seu pai cismou com Lucíola...”. E ela, que já não nutria melhores sentimentos por seu nome, recebia o Dulce com um incômodo amargor. Dulce era nome cortante, fulcro na pele, ferida adocicada, um “horror”, pensava. Dulce era nome trágico, enquanto Lucíola, tão sóbria e moderada, vivia a cada dia como quem espera não o destino, mas um acaso qualquer. Antes de dormir, e depois de apagar o abajur, Lucíola mentalizava e prometia para si, sem muita fé: “Que nesta noite eu não me levante em desatino e que eu não seja, meu Deus, aquela que não sei quem é”.
Ilana
02/06/2007
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Ilana Feldman é escritora, crítica de cinema e cineasta. Dirigiu Se Tu Fores (2001), com Guilherme Coelho, e Almas Passantes (2007), com Cléber Eduardo.


1 Comments:
Para Ilana Felddman
A madrugada é a mãe de todas as tristezas. A madrugada é a mãe de todas as saudades. Mas não cabe arrependimentos, comentários tolos, sorrisos banais. A noite regurgita a essência, que não tem a vergonha na cara de ser solitária.
Ah....as lembranças preenchem os rostos de ontem, as risadas ecoam no silêncio, e eu sinto falta de quem carrego comigo...beijos,lu
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