quarta-feira, junho 23, 2021


 

Reflexo


Dizem que bebo, é verdade.

Um sorriso esquecido,

Um sonho, uma voz.


Bebo a luz na parede, 

O vento nas folhas

E algumas palavras do livro.


O encontro infinito,

A despedida do início,

O sono profundo e a manhã.


O inesperado, o intempestivo

E os silêncios orquestrados

Antes da chuva.


Bebo o rio e as montanhas,

A bruma, a ilha, o vulcão de gelo.


Bebo a jangada que flutua,

Azul, brisa e espuma. 


Não bebo a ti, 

mas o sol do deserto 

na tua ausência.



Edward Soesterberg, 

Rio de Janeiro, 1982. 

Tradução: Maria Clara Neiva

terça-feira, fevereiro 25, 2020


Tapetes



Os tapetes povoados de jardins, 
linhas d’água, nuvens cacheadas, 
mapas continentais onde fadas e narcisos se encontram 
com pinturas boschianas, monstros marinhos 
e caravelas do índigo profundo, 
levantei-os todos aos poucos, 
com cuidado. 

Mas, sob os tecidos de pontos densos, 
não havia miragem ou coisa alguma: 
apenas as dunas da poeira depositada por séculos, 
um infindável areal estéril 
contra o céu absolutamente limpo,
em que uma figura, nua e delgada, 
bebia do próprio sangue
e comia da própria carne.




Lua Arroyo,
25 de fevereiro de 2020

sábado, fevereiro 16, 2019


O DESEJO E OS MITOS


Entrevista com John Whitecraft
Por Emma Soller (especial para a Frincha)


Professor John, neste seu novo livro, publicado pela Blackbell, em três volumes, você recupera a mitologia grega, subsaariana e ameríndia, os textos religiosos judaico-cristãos-muçulmanos, as teorias da física, da matemática, das ciências sociais, da psicanálise, as ideologias políticas, e mesmo a literatura, a música, a poesia e as artes plásticas, para demonstrar que todas essas narrativas possuem uma função: justificar, para os indivíduos, a impossibilidade de realização do desejo. E você considera, ainda, que daí adviria a pertinência social e a perenidade dessas criações...

Sim, é isso mesmo; toda essa produção simbólica, em última instância, desempenharia o papel de um “conformismo lógico” que ameniza o sofrimento individual gerado pela consciência das impossibilidades. Trabalho com o pressuposto de que, embora seja a sociedade a criadora de tudo isso, essas “narrativas”, como você bem denominou, apenas perduram porque têm um sentido fundamental para os indivíduos; e o significado profundo, o verdadeiro motivo que os faz inventar e acreditar neste mundo simbólico, a tal ponto de se tornarem dele dependentes, de sentir que não existem sem ele, é que este tecido de histórias e imagens, de explicações, conceitos, noções, palavras e sons, tornam suportável o fato de que, a rigor, os indivíduos estão sozinhos, de que o mundo não é perfeito e de que o futuro será apenas uma variação do presente.

E as teorias revolucionárias, como a de Marx, ou psicanalíticas, ao exemplo de Freud? Ambas se propõem afastar a religião, as superstições, os preconceitos, para explicar cientificamente, desvendar a realidade.

Boa pergunta, Emma. Trabalho com a ideia mertoniana de propósitos conscientes, declarados, manifestos, em oposição às funções inconscientes, não declaradas, latentes. Lévi-Strauss dizia que as ideologias políticas são as mitologias da sociedade moderna e que Freud era um inventor de mitos. Aliás, Lévi-Strauss foi, no início de sua formação, um jovem marxista e depois se afastou da política. E sobre a psicanálise, conclui que ela exerce, nas sociedades modernas, a mesma função que o xamanismo: faz com que a cura se dê pela recuperação e restituição de uma ordem simbólica que, por algum motivo, esteja cindida.

Mas sua obra leva estas críticas às últimas consequências...

É verdade, sigo adiante apropriando-me dos conceitos de “sentido”, “motivação” e “legitimação” de Weber [pausa para um gole de água]. O fato é que Marx tinha, realmente, preocupações revolucionárias; ele pretendia, a partir de Hegel, entender o movimento da história para orientar a luta proletária em direção a uma sociedade emancipada. Minha pergunta é: de que modo a teoria marxista se enraíza no inconsciente coletivo a ponto de superar o tempo, ainda que todos tenhamos consciência de que a sociedade comunista, posta naqueles termos, jamais se realizará? E, no caso de Freud, o que permite que explicações tão malucas sobre o amor, por exemplo, ganhem crédito, se todos sabemos que, simplesmente, para o amor não há nem nunca haverá explicação?

Minha tese é a de que, embora em formas subversivas, estas ideias adquirem pertinência social justamente porque produzem efeitos conservadores: no caso de Marx, o materialismo histórico convence o indivíduo de que, numa sociedade capitalista, a emancipação individual e coletiva é inviável, de que ele está destinado a explorar o trabalho alheio ou ter o seu tempo de trabalho expropriado, de que as relações sociais jamais serão puras e desinteressadas, mas mediadas pelo capital etc. No caso de Freud, as teorias do complexo de Édipo, da transferência, do narcisismo, da identificação, das perversões, das pulsões, da castração, servem como espécie de consolo para a impossibilidade de realização do amor como relação de plena correspondência; para que o indivíduo perceba que, embora solitário, ele não está sozinho na solidão.

Então, em outras palavras, as ideologias, teorias, mitologias, são criadas e sustentadas porque vão ao encontro de necessidades individuais profundas de aceitação da realidade?

Exatamente. Este seria o verdadeiro “sentido” das mitologias; é o que “motiva” os indivíduos a conferir a elas “legitimidade”, a criá-las, garantir que ganhem vida e sobrevivam. Por isso o título de meu livro, “O Desejo e os Mitos”. As formas de compreensão e explicação da realidade amplamente aceitas, as de caráter religioso, artístico ou científico, e que persistem no tempo, são, precisamente, aquelas que ajudam os indivíduos a se conformar com a impossibilidade de realização do desejo: seja de amor, de liberdade individual, de emancipação coletiva, de igualdade etc.

Para encerrar, gostaria de lhe fazer ainda uma pergunta. Contam que o insight para este livro se deu numa de suas visitas ao Brasil, quando sua amiga lhe apresentou e traduziu a letra de uma composição de Chico Buarque, “Qualquer Canção”. É verdade?

Sim, é muito linda esta composição. “Qualquer canção de dor, não basta a um sofredor, nem cerze um coração rasgado. Porém, ainda é melhor sofrer em dó menor do que você sofrer calado” [cantarolando]. Diz tudo, não é? Quando ouvi, pensei: está aí toda a antropologia. E a melodia também é magnífica. Desde então, coloquei-me este objetivo, escrever sobre a tese desta canção. Posso afirmar que a hipótese de meu livro não é propriamente minha, mas tem a coautoria de Chico Buarque.  

Muito obrigada, Professor John, foi um prazer.

O prazer é todo seu, Emma... Oh, desculpe, é todo meu! [risos].

sexta-feira, julho 06, 2018




Boas Maneiras


Para ser um burguês elegante, 

visite o museu dos massacrados, 
arrote especiarias coloniais, 
conheça a literatura dos esmaecidos. 

Para ser um burguês elegante, 

aprenda com os totens derrubados, 
adore o blues e o jazz dos sofridos, 
decore versos dos maltrapilhos, 
tenha como bíblia a de um povo perseguido. 

Para ser um burguês elegante, 

defenda a exclusividade da entrada, 
da venda e do consumo; 
não invente, aproprie-se, 
seja um bom curador de moribundos. 




Samira Feldman Marzochi

04 de julho de 2018

quarta-feira, maio 23, 2018


Sobre Isso



Naquele dia, conversando com você, vi uma coisa dentro. Foi porque decidi retirar as telhas, o forro, o reboco, os tijolos, o assoalho, e deixar só a estrutura: a fundação, as colunas e as vigas. Ao suspender a fundação, eu vi. Mas curioso que, durante o trabalho, chamei de “mastro” o que havia tomado por “viga”. Mastro é o eixo que sustenta as velas, e as velas inflam a embarcação, fazem que ela deixe a condição de deriva e seja capaz de orientar-se. Então, fiquei entre o desenho da casa e dos barcos.
De fato, eu moro num barco, casas e barcos são equivalentes, e também contêm armações que não podem ser suprimidas ao prejuízo de um desmoronamento. Pensei no verbo manquer, em francês, faltar. Il me manque quelque chose. Soa “mancar” em português, uma ausência que faz mancar sugere uma estrutura que sustenta. Mas o que me ocorreu ontem, na escuridão da estrada, e me impeliu a escrever, foi a imagem do que havia encontrado no fundo.
Era um líquido feio, pastoso, semelhante ao petróleo. E não me admira que assim fosse, embora assombre e cause repulsa. O petróleo é combustível, inflama, mas é também a concentração de todos os tempos orgânicos da Terra, tem a idade da vida extinta, além de morta. Algo que não se sabe mais se é morte ou vida e, ainda assim, pulsa. Todo o empenho da cultura talvez seja por tornar essa coisa palatável, forjar um espaço de aceitação para ela que, em si, é o horror.
Essa pasta pegajosa estava também no porão do barco, e queimada liberava um cheiro desagradável misturado à maresia, ao pescado, ao suor dos corpos. Enquanto as redes brilhavam e as águas ofuscavam a visão, havia o motor, o tremor que emergia do subterrâneo, do fundo do mar e do solo. Um motor de “tantos cavalos”, se diz. Como daquela vez em que percebi, ainda criança, na trilha da fazenda, que o medo de galopar não vinha do galope, mas do desencontro entre a minha vontade e a do animal, e, ao mesmo tempo, do encontro.
Chegando à cidade onde tudo flutua, não há como esquecer quem vive nas ruas e passará a madrugada de inverno à deriva. Vidas mortas que deambulam nuas, sem velas, numa fantasia invisível, como essa que eu visto e me esconde sob o jeans e o cachecol. Foi importante encarar essa coisa dentro, ao menos uma parte dela. Não é fácil ver tudo porque o desmonte é doloroso e não basta. É preciso sustentar o olhar, em exame, e ir de encontro à cultura.
O palácio de colunas em forma de mulheres, em que cada uma inaugura um salão, como se fora o único, entre águas deslizando em mosaicos e drenadas por delicados canais, a Alhambra de um sonho, é só a parte mais sólida e monumental de todas as camadas interiores. Não foi preciso destruir nada, definitivamente, e eu não o faria. Apenas desmontar e montar outra vez, na trilha da fazenda. 

Lua Arroyo
São Paulo, 23 de maio de 2018

sexta-feira, março 16, 2018


Tânia Schneider: O Continente Negro da Linguagem

Entrevista por Tomás Leonel


Professora Tânia, você acaba de lançar um livro muito bem recebido pela crítica intitulado “O Continente Negro da Linguagem” no qual, dizem seus leitores, “a Mulher é finalmente descoberta”. Como você conseguiu algo que nem Freud, nem Lacan, até o fim de suas vidas, conseguiram?

É muito simples, não escrevo nada que estes autores já não tenham dito de diferentes maneiras, tampouco os questiono. Meu trabalho é uma confirmação das teorias sociais preexistentes. Mas lanço mão da literatura nacional, dos poemas, romances e canções populares, como material de análise para desvelar a “mulher”. Os leitores se impressionam porque os poemas são líricos, comoventes, e são apresentados no livro de modo a sugerir uma outra interpretação de textos que lhes são familiares. Além disso, o tema contribui, e estes críticos, aos quais você se refere, são meus amigos; é natural que eles me sobrevalorizem.

E o que diz a literatura sobre a Mulher?

No campo literário, os escritos sobre as “mulheres” dizem muito mais sobre aqueles que escrevem sobre elas. Por isso é possível afirmar que, embora “a mulher” seja meu tema, escrevo, na verdade, sobre o inconsciente. Meu objeto, em última instância, não é “a mulher”. Quando releio Machado de Assis, por exemplo, tomo Capitu como o inconsciente de Bentinho. Tudo o que Bentinho vê em Capitu, sem dar-se conta, é ele mesmo. Capitu oferece uma espécie de massa de modelar para o inconsciente de Bentinho que a faz tomar a forma de seu desejo. O desejo de traição, por exemplo, de obliquidade, de desvio, é dele. Capitu encarna uma história passível de ser narrada, um enredo a ser vivido. Daí concluo que, tal como o inconsciente, a “mulher se estrutura como linguagem”.

Mas isso valeria apenas para o campo literário?

De modo algum. Estas representações literárias se enraízam na cultura, elas apenas têm força porque encontram lugar na vida cotidiana. A diferença é que a literatura é capaz de conservá-las como memória coletiva, mas a mesma análise poderia ser feita sobre a fala diária das pessoas.

Você, então, concordaria com a frase “a mulher não existe”?

É sempre delicado trabalhar com teoria em ambientes que abandonaram a curiosidade científica ou a paixão pelas ideias e se renderam à militância. Há a sensação de que o pensamento não é mais possível. Esta frase, por exemplo, pode ser absolutamente mal interpretada se for tomada "ao pé da letra".  Pior ainda se eu quiser complementá-la com outra: “se a mulher existisse, não seria mulher”. Em um ambiente machista e ignorante, a afirmação pode realmente soar como autorização ao feminicídio, mas é claro que não se trata disso. O que quero dizer é que a demarcação do que seja “a mulher” é cultural, está no plano das representações. E a representação da “mulher” opera, ao menos nas culturas ocidentais, desde as “musas”, como projeção do desejo. Embora eu não diga o mesmo que Lacan, autor da frase, busco mostrar que a "mulher" não existe porque não é uma substância, uma essência, um dado natural que, necessariamente, engloba todas as pessoas que nasceram sem pênis. Sei que partir do pressuposto de que existe esta substância comum é uma necessidade dos movimentos feministas, caso contrário, não poderiam falar pelas "mulheres". Mas, todos sabemos que, empiricamente, não há unidade entre estes indivíduos e nem todos se identificam com os lugares sociais destinados às "mulheres", mesmo sendo heterossexuais, pois são lugares demarcados pelo desejo e olhar de outro que elas incorporam como se fossem os seus. Por isso não posso partilhar da ideia de que a mulher esteja no "real", fora da linguagem. O que há no real são indivíduos singulares, enquanto a mulher é uma categoria, um discurso, está no plano do simbólico e, portanto, do inconsciente. O mesmo valeria para os "homens". Por que não?

A mulher estaria mais para “continente” ou “buraco negro”?

Você deve estar se referindo à entrevista anterior (risos). Neste caso, a mulher está mais para “continente” porque, como representação, ela ocupa um lugar preciso nos mapas de orientação das condutas. A “musa”, a “fada”, a “ninfa”, a “virgem pura”, a “feiticeira”, mesmo a “bruxa”, são referências fortes para a explicação e justificação de certas atitudes, escolhas, paixões. Elas aparecem de diversas maneiras na mitologia do ocidente. No entanto, quando os indivíduos se permitem subsumir pelas representações, elas funcionam como um “buraco negro” realmente. Esta seria a diferença entre “apropriação” e “incorporação”. Quando nos apropriamos das representações, elas nos servem de orientação; quando as incorporamos, somos comandados por elas.

E de onde vem todo esse poder feminino?

Precisamente do fato de que as mulheres não existem. A imagem da mulher nunca se encaixa perfeitamente nas mulheres reais e é essa inconsistência, essa contradição, que assegura seu poder encantatório. Se há alguma descoberta em meu livro, é a de que o encanto, o poder simbólico, emana sempre de um descompasso, de um vão entre a representação e o real. É por esta ausência que os milagres acontecem. A "mulher" como tema e o inconsciente como objeto me permitem compreender o mecanismo pelo qual o mundo simbólico produz, sobre nós, efeito de realidade. 


terça-feira, agosto 01, 2017


Gênero e amor extraterreno: um novo campo de estudos etnográficos

Entrevista com Robert Martius


Por Dália Dantas


Robert Martius, antropólogo internacionalmente reconhecido da área de estudos de gênero e tecnologia, desbrava um novo e denso campo de pesquisas: o das relações amorosas entre humanos e seres extraterrenos. Professor em Harvard, teve sua formação na Universidade de Auckland, Nova Zelândia, e no CNRS, em Paris. Suas pesquisas etnográficas dividiram-se, inicialmente, entre as comunidades andinas e de cientistas da Nasa. Recebeu, em junho, o prêmio Rockefeller da categoria “Pioneiros da Ciência”, mas se recusa a proferir conferências para as quais recebe incessantes convites, sob o argumento de que as palestras são formas autoritárias de divulgação científica. Segundo Martius, “ninguém mais escuta aqueles que nos tomam como interlocutor genérico”. Inspirado nos antigos filósofos, prefere o diálogo e pouco se preocupa com a produção bibliográfica. Nunca publicou livros ou artigos, senão as notas de aulas organizadas por seus orientandos e as inúmeras entrevistas concedidas, exclusivamente, de modo presencial.

Dantas – Professor Martius, em primeiro lugar agradeço imensamente sua gentileza em conceder esta entrevista. Gostaria de começar perguntando sobre seu percurso intelectual. Das comunidades andinas, passando pelos cientistas da Nasa, como foi a jornada até a etnografia das relações amorosas, especialmente de cunho sexual, com extraterrestres?

Martius – Dalia, sou eu quem agradece. Você sabe que é nestes momentos, em diálogo, que produzo de fato conhecimento. A verdade é que sou um empirista da palavra e levo muito a sério a metodologia científica. Comecei pesquisando a relação da população de Nazca com os famosos geoglifos. Minha intenção não era solucionar o mistério sobre eles, mas entender o que representavam para a população local. A partir daí, fiz uma comparação entre os relatos dos peruanos daquela localidade com as narrativas de cientistas da Nasa sobre o que significava, para eles, as imagens da Terra tomadas por satélites. Descobri que, nos dois casos, no momento em que falavam sobre os desenhos de Nazca ou sobre as imagens da Terra, assumiam uma perspectiva extraterrena que também fazia parte de suas vidas cotidianas, como se estes deslocamentos os fizessem sofrer uma transmutação existencial, um alargamento subjetivo.

Dantas – E como chegou à pesquisa sobre relações sexuais extraterrenas?

Martius – Daí foi um passo. Interessaram-me, posteriormente, os grupos de ufólogos de Goiás, região central do continente sul-americano. Entre tantos relatos interessantes, chamaram-me atenção as narrativas sobre relações sexuais com extraterrestres. Esforcei-me, então, para estabelecer vínculos entre minhas conclusões anteriores e estes novos estudos etnográficos, e descobri que o alargamento subjetivo estava também presente, porém de modo ainda mais claro. Este ponto virtual, em que se colocam os habitantes da região de Nazca ou os cientistas da Nasa, para observar a Terra, era a perspectiva da auto-observação afetiva. Digamos que este ponto, que é um “outro” imaginário construído para o deslocamento da perspectiva, seja passível de enamoramento.  

Dantas – Então, estas relações sexuais não eram verdadeiras, mas imaginárias?

Martius – Elas eram tão verdadeiras quanto todas as relações. Mas, o que me interessava, era a narrativa sobre elas.

Dantas – E como eram?

Martius – Eram exatamente narrativas sobre deslocamentos de perspectiva amorosos. Das dezenas de questionários que apliquei entre pessoas indicadas pela comunidade de ufólogos de Goiás, 90% relataram que estas relações se deram de forma passiva, sem agitação de corpos ou mesmo com pouca ou nenhuma aproximação física. Eram, em 70% dos casos, mediadas por instrumentos tecnológicos desconhecidos que produziam ou não algum tipo de som. Em 97%, eram os terráqueos que se deitavam enquanto os extraterrestres se punham em pé. E, repare: em 100% das respostas, havia alguma associação entre o “olhar” e o “orgasmo”. Porém, quando o questionário perguntava como eram os olhos dos extraterrestres, apenas 34% sabiam responder, pois o "olhar" era, sobretudo, uma sensação que se aproximava do sentimento de ser compreendido.

Dantas – Mas o que o faz entender estas descrições como “relações sexuais”? Elas me soam mais como cirurgias.

Martius – Estes casos me foram trazidos como “relações sexuais com extraterrestres”. Não fui eu quem os classificou assim. Mas você intuiu bem, eram cirurgias. Estas pessoas entendiam o amor como uma cirurgia do olhar. Algo que as revelava e produzia um bem-estar incomum, uma profunda leveza. E mais: o que elas me descreviam não eram as relações em sua dimensão real, corpórea, difícil de significar, mas as “sobre-relações”, aquela dimensão do amor que paira como realidade de segunda ordem e que, esta sim, estaria na dimensão da palavra.

Dantas – Foi então que partiu para as discussões de gênero?

Martius – Sim, esta descoberta foi um marco de minha entrada no campo de estudos de gênero. Todos os relatos, para ser exato, 97% dos entrevistados, não identificaram nestas relações nenhum tipo de gênero feminino ou masculino. Quando eu perguntava “você acha que fez amor com um homem ou com uma mulher extraterrestre?”, 97% não sabiam responder. Mas eram frequentes as narrativas sobre a sensação de estar sendo observado no bom sentido, de ser reconhecido, e esta sensação se confundia com o sentimento amoroso. Estes casos revelam que a diferença de gênero não era a condição do amor, mas o reconhecimento, e que as diferenças de gênero apenas são diferenças quando permitem este deslocamento do olhar sobre si a partir de um “outro”. Eis aí a chave para um novo entendimento do conceito de "gênero". 

Dantas – Ao que parece, professor Martius, seu objetivo é, no fim das contas, entender o amor.

Martius – Sempre é, Dália. Provavelmente, é o seu também (risos). 


sexta-feira, julho 21, 2017


Cidade



A multidão lembra o mar  
que arrebata no fluxo das ruas,
invade a praia até o calçadão longínquo 
e faz correr infinitamente. 

A multidão lembra o mar,
gravidade constante, vibração fria
que ressoa no corpo como concha acústica,
a matéria da alma.

A multidão lembra o mar,
a grande asa que sobrevoa, draga,
e se fecha ao entardecer
com a sonolência das pombas.





Samira Marzochi, 
São Paulo, 21/07/2017

quinta-feira, março 16, 2017


Objeto A: um fenômeno físico

Entrevista com Tânia Schneider

Por Tomás Leonel, para a Frincha


Professora Tânia, você acabou de lançar seu novo livro, pela BlackBell, que já está na segunda edição, sobre a confluência entre a física e a psicanálise para a exploração do “Objeto A”, conceito de Lacan. De que modo surgiu a ideia de utilizar a física como metáfora para a compreensão de fenômenos psicanalíticos?

Minha primeira formação foi em física, interessei-me depois por sociologia e só então passei a estudar psicanálise que considero uma das sínteses possíveis, e das mais interessantes, entre as diversas formas de conhecimento. Meu livro Objeto A: um fenômeno físico se apropria da Segunda Lei da Termodinâmica e da teoria da formação dos buracos negros para explicar o que nos motiva, a razão pela qual sempre buscamos algo, fazemos certas escolhas, as causas das nossas angústias, da sensação de perda, do desespero, do pânico, das compulsões...

Seu livro tem sido considerado pouco rigoroso pelas escolas de psicanálise. A que você atribui esta crítica?

É o preço que pagamos pela criatividade e pelo desapego. Meu conceito de Objeto A, Objeto “Autre”, é, de fato, uma interpretação livre. Grosso modo, para Lacan, o Objeto A não é o objeto que foi arrancado de nós, “a perda do objeto” ou “o objeto perdido”, como em Freud, mas o “objeto da perda”, o que pretendemos colocar no lugar do que perdemos. Isso tem muito a ver com a noção de Entropia, com a ideia de que tudo o que existe tende à desorganização estrutural e ao desaparecimento. Os buracos negros seriam a realização desta lei levada ao paroxismo. As estrelas nascem e morrem inevitavelmente. É como se tudo o que existisse, por estar destinado à autodestruição, contivesse em si um buraco negro virtual por onde a existência escoa. Assim acontece com as pessoas. Estamos fadados à morte, tanto orgânica quanto social, temos essa percepção desde que nascemos e então buscamos evitar o nosso desaparecimento tentando vedar nossos buracos negros com “objetos” fora de nós que virtualmente se encaixem neles. Por isso o que desejamos pode variar ao longo da vida, e entre as diferentes pessoas, porque muda a nossa percepção deste “buraco”. O importante é considerar que esta motivação nos direciona, confere sentido às nossas ações, e quando sentimos que não estamos no caminho certo do encontro destes objetos, surge a angústia, a compulsão ou o pânico, a certeza de que estamos apenas vazando, perdendo-nos, e de que nada fazemos para impedir o fim.

Trata-se da “pulsão de vida” contra a “pulsão de morte”, de Freud?

De certo modo, sim, refiro-me à tensão entre a tendência à desorganização irreversível dos sistemas físicos e o esforço que faz o “Demônio de Maxwell” para evitar a Entropia; entre a pulsão de vida e a de morte, se assim preferir. O fato é que todo o nosso empenho é pela sobrevivência, pela perpetuação. Trabalho, filhos, amores, projetos, consumo, identidade, tudo pode estar no pacote do que poderia estancar este furo por onde a vida se vai. O barato é que, por sermos humanos, vamos além da simples reprodução orgânica, nossas metas são definidas pelas experiências culturais, a começar pela herança familiar, pelas instituições escolares, pelo tipo de sociabilidade, pelas exigências profissionais e afetivas.

Então, o Objeto A não é o “objeto de desejo”, como se costuma pensar?

Esta afirmação talvez não seja precisa, assim como aquela que diz que o Objeto A é a causa do desejo. A rigor, a causa do desejo é o furo e não o objeto. O que desejamos urgentemente é lacrar, com todas as nossas forças, este verdadeiro rombo existencial. É neste projeto que depositamos a maior parte de nossa energia física e psíquica. Embora não seja o objeto de desejo ou o desejo de desejar, o Objeto A se relaciona estreitamente com a questão do desejo, mas de outra maneira:  como desejo de ser desejado, de ser querido, o desejo de que os outros desejem que sobrevivamos, que continuemos vivos. O desejo de ser amado seria, como na expressão italiana “io te voglio bene”, o desejo de ser querido bem, inteiro, sem avarias e perdas, intacto, integral, como viemos ao mundo. Por isso as experiências consideradas boas podem trazer a sensação de renascimento ou de reencontro com uma suposta “verdadeira” identidade.

Isso explicaria, por exemplo, as paixões obsessivas?

Certamente. As obsessões por alguém, pelo dinheiro ou por um time de futebol, por exemplo, resultam de uma projeção fixada, quando o buraco que se tem não muda de forma ao longo da vida, como seria saudável que ocorresse. Sendo uma projeção possível em infinitos elementos, o Objeto A não precisa ter uma forma única porque nosso buraco negro também não tem. O sujeito imagina que sem aquela pessoa, dinheiro ou bandeira, não sobreviverá, deixará de existir, pois não conseguiria bloquear seu furo e estancar a sangria. Por isso o Objeto A pode ser também compreendido como um espelho que omite a falta, que representa a nossa integridade, uma vez que "Sujeito + Objeto A" resultam no que seria idêntico a nós mesmos (Sujeito + Objeto A = Identidade). O que muitas vezes parece vaidade, fanatismo, orgulho, obsessão, pode ser a luta desmedida e desesperada pela sobrevivência.

Mas é uma patologia...

Sim, quando esta luta se transforma em doença, precisa ser tratada. 

Como seria o tratamento?


O ponto de equilíbrio é próprio de cada um e há múltiplos percursos até ele, mas talvez seja necessário fazer como os sábios: naturalizar o fim. 


O objeto A é, então, uma rolha?

Sim, é isso (risos). Mas não é só, tem suas implicações, como vimos, e, além do mais, nunca consegue cumprir esta função. 

E os animais, também perseguem o Objeto A?

De algum modo, é verdade, eles também buscam afeto, reprodução e alimento, sobrevivência, também desejam se sentir desejados. Mas, para estudá-los, precisamos ultrapassar o campo da linguagem que é central para a compreensão da subjetividade nas ciências humanas. Isto é, precisamos alargar nossa concepção de subjetividade em direção a algo que inclua, também, a comunicação não verbal.

Isso é possível?

Ainda não sei, será o desafio de meu próximo livro. 


sexta-feira, junho 17, 2016


Análise



Queria fazer o que você faz:
abrir uma porta e realmente instituir
uma passagem;
fechá-la e separar universos.

Ter, numa parede, uma divisória real
capaz de decantar as palavras
das vozes.

O problema é que embaralho tudo:
uma porta que bate, de súbito,
projeta uma paisagem.

Os cortes no espaço, de fato, desnudam,
como secções na carne de um peixe,
mas não de um jeito que permita suturar.

Faço, dos lugares, cômodos sem piso
e sem limites
onde o que há e o que não existe
flutuam de igual modo involuntário.

Além de mim e de você
todo o resto é a decoração de um aquário.  



sábado, junho 20, 2015


A Economia dos Sonhos



Conta um mito ameríndio das ilhotas do grande Rio Amazonas, registrado em diário do século XVII pelo português marrano José Oliveira, - mascate que se enraizou no norte brasileiro casando-se com Poti e Maria Amélia e deixando dezenas de filhos, entre os quais três padres, uma feiticeira, uma guerreira tupi e um terrível capitão do mato, - que o sonho era um deus chamado Tibiquera. Dorminhoco numa terra sem males situada a oeste do Rio, este sentinela invertido despertava apenas para tirar dos sonhadores o tempo de vida que davam em troca do conteúdo que ele sonhava. Dotado do poder de inventar enredos oníricos, Tibiquera não poderia fazê-lo a partir do nada, e então usava a vida dos homens como material para produzir as imagens dos sonhos. Era assim que, no sonho, o cotidiano aparecia engraçado, Tibiquera mudava todas as ordens, o que era impossível acontecia e o que era absurdo podia existir. Mas ocorreu certa vez que, segundo José Oliveira, a população daquelas ilhas se aborreceu com as cobranças exageradas deste deus. Logo após a chegada de portugueses e franceses que trouxeram artefatos diversos aos índios e lhes contaram muitas histórias, uma grande parte da aldeia foi acometida de sono e delírios, encontrando o fim precoce de seu tempo neste mundo. O pajé atribuiu as mortes ao excesso de sonho que tinha de ser necessariamente trocado pelo tempo de vida exigido por Tibiquera. Desde então, a aldeia é regida por uma lei superior: para não se deixar consumir pela imaginação, tornou-se proibido sonhar sozinho, pois sonhando junto os mesmos sonhos, o tempo de vida seria também partilhado. É possível ainda hoje observar que na aldeia de José Oliveira, agora uma vila nomeada Oliviana, composta de seis pequenas ilhas interligadas por pontes que formam no mapa uma estrela, todos dormem de mãos dadas.



Samira Feldman Marzochi,
"A Economia dos Sonhos” em Mitos Inventados.

terça-feira, junho 16, 2015


Os ideais e os sonhos


    A gente, em geral, mistura "sonhador" com "idealista". Mas tem diferença. Conheci muitos sonhadores céticos e muitos idealistas sem imaginação. Reparando bem, os sonhadores têm maior potencial para o idealismo que os idealistas para o sonho. Porque o idealismo a gente aprende por formação e cultura, já o sonho é muito original da pessoa. Um sujeito sonhador e idealista é uma existência completa. Só duas coisas podem tirar a felicidade dele: a fome e a dor. Sou idealista quanto à possibilidade de plantar a utopia nos sonhadores. Já o sonho nos idealistas... Como disse, o idealismo a gente aprende e o que a gente aprende pode ser desaprendido quando a situação não é favorável. Mas o sonho é uma doença romântica no sentido de algo que acomete o indivíduo, não uma capa que se veste. Deixo, então, este bilhetinho aos sonhadores.



    Samira Feldman Marzochi, 15/06/2015

CONVERSA NA COZINHA



Pequena lagartixa, mal sabes
que gente não gosta de bichos
que rastejam.
Nasceste não faz muito,
vê-se pelos olhos ainda atentos.
Nem comeste o primeiro inseto,
tão pura pareces,
incapaz de hipnotizar outra presa.
Não conheço nada do teu ciclo de vida
e menos sei do meu
de vida sentimental.
Ajoelho-me ao pé da porta
para falar-te,
abrir meu coração descompassado.
Se tens aquela sintonia zen dos sapos
capaz de deixar tudo em suspenso,
talvez eu aprenda um pouco.
Embora recém-nascida, és orgânica
e também quero ser. 
Ensina-me a esquecer, Pequena,
que a gente não gosta
dos bichos que rastejam?
Mesmo assim, fico tentada
a escrever-te um poema...




Samira Feldman Marzochi
Barão Geraldo, 19 de março de 2005

quinta-feira, maio 28, 2015


Sentido Único



Metrô lotado e cada um é um só.
Quem imaginava que, ao inventar as gentes,
criaria tantas histórias sentidas?
Adivinhar ou planejar isso é muito mais
que criar a vida na Terra.
E olha que não acredito em entidade fundadora,
mas me espanto ao reconhecer:
gente é história sentida.
Tenho vontade de gritar:
"Bonjour, messieurs dames!"
Mas quem sou eu?
Não tenho a autenticidade dos loucos de rua.
Quem sou eu para dar bênçãos
às histórias sentidas de cada um neste vagão
e nos outros vagões lotados desta linha
que cruza as pedras da cidade?
A ideia me comoveu, tudo é ideia que comove
e nada seria se não fosse.
Desisto de enlouquecer e permaneço,
como cada um, em sentido único,
na vastidão do pequeno trecho
até a próxima estação.



Samira Feldman Marzochi
Ana Rosa - Tietê
Manhã, 28/05/2015

terça-feira, maio 19, 2015


Sentimento Puro



Não sei de onde vem minha autoestima. Não tenho senso de localização, nem sei matemática. Isto é, nas duas categorias básicas do entendimento humano, espaço e tempo, sou deficitária. Meu corpo, então, não compensa. O rosto é bonitinho, embora a testa cresça. Em contrapartida, a perda progressiva dos seios e nádegas acompanhada do abdômen que adquire o aspecto de uma pequena calota, conforma uma espécie de ser extraterreno. Outro dia, à meia-luz, enquanto vestia o pijama, vi no espelho um E.T. branco e compacto, desses de filme. Simpático até. Era eu. Eu vim de um planeta sem espaço e sem tempo. Tudo lá é sentimento puro.



Dani Lopes, Geração Star Trek, p.29


segunda-feira, fevereiro 16, 2015


Lapis Lazuli


Em uma cultura muito antiga, sem nome conhecido, da região que posteriormente fora conquistada pelos nabateus, havia um mito, de registro encontrado na Suméria pelos gregos e depois traduzido pelos mouros da Península Ibérica, que explicava o, digamos, interesse afetivo. Todos os indivíduos nasceriam com uma entidade semiautônoma e invisível aos seres humanos, ligada à espinha dorsal, que poderia ou não subdividir-se em um bom número. Estas entidades, ressentidas por terem nascido nuas, amorfas e invisíveis, tenderiam a procurar corpos de outras pessoas para se vestirem deles, sem nenhuma espécie de consulta ou consentimento. Os indivíduos, deste modo, poderiam reconhecer em outros essências muito particulares, ligando-se a estes de modo recíproco ou desencontrado. Por isso, os sábios desta cultura ensinavam a desfazer os encantos afetivos malogrados batendo duas pedras azuis, uma contra a outra, a fim de romper o cordão que prendia a entidade, até que uma nova, após semanas ou meses, crescesse novamente. Contudo, o procedimento não poderia ser refeito mais de sete vezes, pois a entidade, que não tinha mais que sete vidas, vestir-se-ia, definitivamente, do corpo que lhe deu origem.


Samira Feldman Marzochi, Mitos Inventados.

sexta-feira, fevereiro 04, 2011







A PAPUTANGA

(...) A Paputanga dá em árvore aparentada da seringueira e, por isso, ao toque do fruto redondo que ocupa, em geral, uma palma de mão, sentimos um grande prazer tátil. Nem sequer podemos dizer que haja pele propriamente, muito menos uma casca distinta da carne que vai, ao contrário da maioria das frutas, amolecendo-se em direção ao centro onde se encontra o suco.

Seu perfume pouco se percebe até que damos a primeira dentada. Exala no romper dos gomos um cheiro profundo de planta verde mesclado a alguma espécie de chá familiar que não sabemos se vem de uma flor ou de uma folha. Ao fundo, uma nota seca, nada cansativa.

A textura é tão diferente que se nos dissessem os nativos que esta fruta caiu do céu e aqui se multiplicou, creríamos. Embora seja feita de um tecido denso, ao contato com a língua os nacos se dissolvem, sensíveis à saliva ou à temperatura da boca.

As cores e os sabores da Paputanga variam conforme as estações, mas em todas elas o fruto é sempre bom. No inverno, tem a cor do pêssego, com manchas acinzentadas. No verão, é vermelha, com tintas cor-de-laranja. Na primavera, é uniformemente cor-de-rosa e, no outono, é de um verde-musgo que evolui ao azul-marinho.

Passei a coletar e pintar sobre a mesma tela estas frutas em suas diferentes fases. Como os nativos jamais as vêem juntas, em cores diversas, uma vez que não há como conservá-las durante um ano inteiro, batizaram minha natureza morta de “tempos que não morrem”.

Embora o perfume da Paputanga não varie, os sabores se alternam em quatro estágios: na primavera, tem um gosto ensolarado à primeira mordida e, ao final, quando escorre o sumo de seu interior, é possível sentir algo do néctar das flores com que os pássaros-besouro matam a sede.

No verão, há qualquer coisa de alga marinha, um grão de sal bem distante que faz os sentidos se alterarem e produzirem na fronte a sensação de uma brisa úmida, como esta que vem do Atlântico, das correntes frias.

No outono, uma substância próxima da cafeína se sintetiza no fruto que sem ele não nos levantamos pela manhã. Em dias tristes, a Paputanga é um remédio que elimina todo o pensamento ruim. Tem o sabor das folhas secas maceradas em calda, levemente amadeirado, similar à noz moscada ou à canela.

No inverno, esta marca arbórea persiste, mas se diferencia em paladar achocolatado, não do cacau exatamente, mas do tabaco.

Os tamanhos, em cada estação, se transformam. As frutas crescem mais no verão, quando são suculentas, e, aos poucos, vão perdendo até um terço do volume, no inverno, quando se tornam cremosas (...).



Extrato de Bartolomeu Dantas, A invenção da felicidade, Editora Tocco, 1958, p.29.



Criação de Samira Feldman Marzochi

sábado, junho 12, 2010





Anti-semitismo: racismo politicamente correto?

Entrevista com Mirna Schatz/Anastácia Ferraz
por Ivana Mikva



Mikva - Você lançou seu primeiro livro nos Estados Unidos, em 1999, A morte do espírito (The death of the spirit, Ed. BlackBell), que chamou atenção da crítica pela ponderação e justeza das análises, em que aponta os principais limites ao desenvolvimento da reflexão filosófica no mundo contemporâneo. Por isso nos intriga tanto sua atitude radical mais recente. Por que você decidiu abandonar a herança judaica, trocar seu nome para Anastácia Ferraz e se iniciar no Candomblé?

Ferraz - Como Mirna Schatz passei a sentir-me, no plano do pensamento, alguém que anda invariavelmente em círculos ao tentar responder questões atuais importantes. Meu livro reflete esta angústia. Solicitavam-me sempre análises e posicionamentos sobre as questões israelo-palestinas. Por causa de minha história familiar, era tentada a envolver-me no debate. Mas, sobre este tema, jamais encontrava o equilíbrio ou uma direção para desenvolver o pensamento. Entre familiares, situava-me contra Israel; entre o público, a favor. Se atacava Israel juntando-me ao público, sentia-me cínica, como se lavasse as mãos em relação a algo que me comprometia e de que muito pouco tinha conhecimento para sugerir soluções concretas e responsáveis. Se defendia Israel junto ao público, sentia-me, com muito pesar, indiferente à questão Palestina. Enfim, minha profissão, a de filosofar sobre problemas sociais, políticos, culturais, tornou-se impraticável. Era impossível formular, rigorosamente, uma tese sobre o assunto. Sei, por um lado, o quanto a defesa da causa palestina pode implicar a ignorância dos objetivos declarados pelo Hamas e outros grupos, o que coloca não só o Estado de Israel, mas todos os judeus do mundo, numa cilada. Por outro lado, identifico-me com a dor dos palestinos e sua revolta alimentada pelas práticas sistemáticas dos governos israelenses. Isto tudo se tornou pesado demais. Ciente destas limitações, entrei em depressão, fiz um câncer, desejei livrar-me de mim. Estava no fundo do poço quando tive um insight. Percebi que não me faltavam elementos teóricos para ser capaz de abandonar-me, deixar de ser eu como quem despe uma pele e veste outra. Não me faltaria imaginação para inventar uma nova identidade. Tornei-me Anastácia Ferraz. Não se tratou, portanto, de uma fuga, como poderia ser um suicídio. Estou aqui, presente, ativa, criadora e criatura. Acreditei mais em mim que nas imagens que me eram impressas.

Mikva - Mas isto, de certo modo, não é fugir de um posicionamento político?

Ferraz - O problema é que, como disse, eu não tinha um posicionamento político verdadeiro. Eram sempre sentimentos e razões incongruentes que se manifestavam. Decidi que, ou eu mergulharia no problema tornando-me uma especialista, ou deveria deixar de ser eu. Percebi que a primeira escolha seria mais arriscada. Eu poderia apenas aumentar meu conhecimento sem conseguir ordená-lo. Os intelectuais não têm dores de cabeça à toa. Eles são constantemente policiados por eles mesmos e por seus pares. As palavras saem de suas bocas como massa que se desdobra, ganha autonomia, atinge ou se isola, torna-se cruel ou ridícula. Deixando de ser Mirna, penso como quem voa, pega ondas, faz manobras, jamais com pretensão de acertar. A fala de Anastácia não é um objeto cortante; tem a textura da vida, é algo que se mistura às coisas, às pessoas, às cores do dia e da noite, aos elementos da cultura e da natureza. Assim pude recondicionar meu pensamento, distanciando-me do que antes era próximo demais.

Mikva - O anti-semitismo venceu dentro de você?

Ferraz - (Silêncio). Esta pergunta é realmente difícil. O anti-semitismo estava me vencendo ao aprisionar minha percepção das coisas. Então, decidi vencer-me, vencer quem o anti-semitismo estava derrotando. Se eu continuasse Mirna, jamais me livraria dele. Não queria mais ver o mundo dividido entre judeus e não-judeus. Para mim, isto sim seria uma derrota intelectual e moral. Queria ter o olhar livre de quem parte de outro paradigma: politeísta e não-ocidental. Por isso o Candomblé. Eu não poderia adotar uma religião cristã ou islâmica que se apropriasse das criações judaicas de um deus único, de seus profetas e de seus textos, para negar os hebreus. Como se sabe, toda a civilização judaico-cristã-islâmica, em sua base moral e religiosa, divide o mundo entre judeus e não-judeus.

Mikva – Não será isso o mesmo que auto-exilar-se, viver como foragida?

Ferraz - Eu vivia, sim, como foragida; carregava a culpa de crimes que não cometi; o tempo todo media palavras, eufemizava, para não trair ninguém. E você, também não tem a sensação de esconder-se?

Mikva - Não pensou em resolver isso com análise?

Ferraz - Cansei de soluções convenientes e discretas dentro de um suposto “possível” que, em si, é estruturalmente inviável. Parti para um projeto novo, radical, precisei experimentar isso. Mudar é um projeto; não significa que terei êxito. Adotar outra perspectiva já é viver a transformação. Desejo me orientar pela transcendência, mesmo que Anastácia jamais se realize completamente, assim como Mirna nunca se realizou. Anastácia será sempre um horizonte, um além-mar.

Mikva - Às vezes penso que o anti-semitismo talvez seja o único racismo “politicamente correto”. O que se diz hoje dos “judeus”, que eles são muito ricos e controlam tudo, é o mesmo que se dizia na Alemanha nazista. Há professores ensinando isso nas escolas, intelectuais bem formados argumentando coisas deste tipo em discussões públicas.

Ferraz - Este é outro ponto problemático. Ir contra o anti-semitismo hoje, inclusive no Brasil, não é, de fato, partilhar de uma mesma moralidade dita “politicamente correta”. Os judeus não são mais lembrados nas discussões sobre o racismo como ainda eram até os anos 60. É como se a questão estivesse resolvida. Não está. Há sempre um anti-semitismo marolando no ar. É um racismo que exalta os judeus. O senso comum espera que os judeus dêem mais que recebam, como se fossem moralmente superiores, como se tivessem realmente mais para dar que os outros, como se fossem destinados ao sacrifício. Jesus caiu nesta armadilha. Os judeus se apropriam destas representações e, assim, dão-lhes mais força. Um dos resultados, por exemplo, é chamar de “holocausto”, isto é, “sacrifício”, o genocídio contra os judeus. Mesmo as generalizações sobre a “inteligência” ou a “esperteza” dos judeus são um preconceito racista, pois pressupõem que eles sejam ameaçadores. Até pessoas muito cultas sustentam a clássica idéia (sem qualquer comprovação empírica) de que os judeus são unidos e se protegem mutuamente. A história mostra de forma objetiva que não é nada disso. Seis milhões morreram na Guerra, muitos escaparam, vários receberam ajuda de não-judeus, vários trabalharam para a SS. Os judeus são simplesmente iguais a todo o mundo, e isto não deve soar como um pecado.

Mikva – Ao entrar no Candomblé, não se deparou com outro tipo de racismo?

Ferraz - Sim, mas aí tenho companhia para pensá-lo. Os afro-brasileiros chamam de racismo o que sofrem, enquanto os judeus não admitem para eles mesmos que são vistos como “raça”, como etnia que guarda características particulares e que este é um pensamento racista sobre os judeus. Chamam de “anti-semitismo”, mas “semitas” são todos os árabes, é um termo que não diz muita coisa.

Mikva - E por que não tentou mobilizar as comunidades judaicas contra o racismo?

Ferraz - Ora, se as “raças” não existem na realidade, eu não preciso mobilizar “os judeus”, apenas participar de qualquer grupo que lute contra o racismo. O importante é ir contra o conceito de “raça” que é uma construção coletiva racista, independente da identidade cultural que se possa adotar.


12 de junho de 2010
Criação de Samira Feldman Marzochi