quarta-feira, junho 23, 2021
Reflexo
Dizem que bebo, é verdade.
Um sorriso esquecido,
Um sonho, uma voz.
Bebo a luz na parede,
O vento nas folhas
E algumas palavras do livro.
O encontro infinito,
A despedida do início,
O sono profundo e a manhã.
O inesperado, o intempestivo
E os silêncios orquestrados
Antes da chuva.
Bebo o rio e as montanhas,
A bruma, a ilha, o vulcão de gelo.
Bebo a jangada que flutua,
Azul, brisa e espuma.
Não bebo a ti,
mas
na tua ausência.
Edward Soesterberg,
Rio de Janeiro, 1982.
Tradução: Maria Clara Neiva
terça-feira, fevereiro 25, 2020
Tapetes
Os tapetes povoados de jardins,
linhas d’água, nuvens
cacheadas,
mapas continentais onde fadas e narcisos se encontram
com pinturas
boschianas, monstros marinhos
e caravelas do índigo profundo,
levantei-os todos aos poucos,
com cuidado.
Mas, sob os tecidos de pontos densos,
não havia miragem ou coisa
alguma:
apenas as dunas da poeira depositada por séculos,
um infindável areal
estéril
contra o céu absolutamente limpo,
em que uma figura, nua e delgada,
bebia
do próprio sangue
e comia da própria carne.
Lua Arroyo,
25 de fevereiro de 2020
sábado, fevereiro 16, 2019
O DESEJO E OS MITOS
Entrevista
com John Whitecraft
Por Emma
Soller (especial para a Frincha)
Professor John, neste seu novo livro, publicado
pela Blackbell, em três volumes, você recupera a mitologia grega, subsaariana e
ameríndia, os textos religiosos judaico-cristãos-muçulmanos, as teorias da
física, da matemática, das ciências sociais, da psicanálise, as ideologias
políticas, e mesmo a literatura, a música, a poesia e as artes plásticas, para demonstrar
que todas essas narrativas possuem uma função: justificar, para os indivíduos,
a impossibilidade de realização do desejo. E você considera, ainda, que daí
adviria a pertinência social e a perenidade dessas criações...
Sim, é
isso mesmo; toda essa produção simbólica, em última instância, desempenharia o
papel de um “conformismo lógico” que ameniza o sofrimento individual gerado
pela consciência das impossibilidades. Trabalho com o pressuposto de que,
embora seja a sociedade a criadora de tudo isso, essas “narrativas”, como você
bem denominou, apenas perduram porque têm um sentido fundamental para
os indivíduos; e o significado profundo, o verdadeiro motivo que os faz inventar
e acreditar neste mundo simbólico, a tal ponto de se tornarem dele dependentes,
de sentir que não existem sem ele, é que este tecido de histórias e imagens, de
explicações, conceitos, noções, palavras e sons, tornam suportável o fato de
que, a rigor, os indivíduos estão sozinhos, de que o mundo não é perfeito e de que
o futuro será apenas uma variação do presente.
E as teorias revolucionárias, como a de Marx,
ou psicanalíticas, ao exemplo de Freud? Ambas se propõem afastar a religião, as
superstições, os preconceitos, para explicar cientificamente, desvendar a
realidade.
Boa
pergunta, Emma. Trabalho com a ideia mertoniana de propósitos conscientes,
declarados, manifestos, em oposição às funções inconscientes, não declaradas, latentes.
Lévi-Strauss dizia que as ideologias políticas são as mitologias da sociedade
moderna e que Freud era um inventor de mitos. Aliás, Lévi-Strauss foi, no
início de sua formação, um jovem marxista e depois se afastou da política. E
sobre a psicanálise, conclui que ela exerce, nas sociedades modernas, a mesma
função que o xamanismo: faz com que a cura se dê pela recuperação e restituição
de uma ordem simbólica que, por algum motivo, esteja cindida.
Mas sua obra leva estas críticas às últimas
consequências...
É verdade,
sigo adiante apropriando-me dos conceitos de “sentido”, “motivação” e “legitimação”
de Weber [pausa para um gole de água]. O fato é que Marx tinha, realmente,
preocupações revolucionárias; ele pretendia, a partir de Hegel, entender o
movimento da história para orientar a luta proletária em direção a uma
sociedade emancipada. Minha pergunta é: de que modo a teoria marxista se enraíza
no inconsciente coletivo a ponto de superar o tempo, ainda que todos tenhamos
consciência de que a sociedade comunista, posta naqueles termos, jamais se
realizará? E, no caso de Freud, o que permite que explicações tão malucas sobre
o amor, por exemplo, ganhem crédito, se todos sabemos que, simplesmente, para o
amor não há nem nunca haverá explicação?
Minha tese
é a de que, embora em formas subversivas, estas ideias adquirem pertinência
social justamente porque produzem efeitos conservadores: no caso de Marx, o
materialismo histórico convence o indivíduo de que, numa sociedade capitalista,
a emancipação individual e coletiva é inviável, de que ele está destinado a
explorar o trabalho alheio ou ter o seu tempo de trabalho expropriado, de que
as relações sociais jamais serão puras e desinteressadas, mas mediadas pelo
capital etc. No caso de Freud, as teorias do complexo de Édipo, da
transferência, do narcisismo, da identificação, das perversões, das pulsões, da
castração, servem como espécie de consolo para a impossibilidade de realização do
amor como relação de plena correspondência; para que o indivíduo perceba que,
embora solitário, ele não está sozinho na solidão.
Então, em outras palavras, as ideologias, teorias,
mitologias, são criadas e sustentadas porque vão ao encontro de necessidades
individuais profundas de aceitação da realidade?
Exatamente.
Este seria o verdadeiro “sentido” das mitologias; é o que “motiva” os indivíduos
a conferir a elas “legitimidade”, a criá-las, garantir que ganhem vida e
sobrevivam. Por isso o título de meu livro, “O Desejo e os Mitos”. As formas de
compreensão e explicação da realidade amplamente aceitas, as de caráter
religioso, artístico ou científico, e que persistem no tempo, são, precisamente,
aquelas que ajudam os indivíduos a se conformar com a impossibilidade de
realização do desejo: seja de amor, de liberdade individual, de emancipação
coletiva, de igualdade etc.
Para encerrar, gostaria de lhe fazer ainda uma
pergunta. Contam que o insight para
este livro se deu numa de suas visitas ao Brasil, quando sua amiga lhe
apresentou e traduziu a letra de uma composição de Chico Buarque, “Qualquer
Canção”. É verdade?
Sim, é muito
linda esta composição. “Qualquer canção de dor, não basta a um sofredor, nem
cerze um coração rasgado. Porém, ainda é melhor sofrer em dó menor do que você
sofrer calado” [cantarolando]. Diz tudo, não é? Quando ouvi, pensei: está aí toda a
antropologia. E a melodia também é magnífica. Desde então, coloquei-me este
objetivo, escrever sobre a tese desta canção. Posso afirmar que a hipótese de meu
livro não é propriamente minha, mas tem a coautoria de Chico Buarque.
Muito obrigada, Professor John, foi um prazer.
O prazer é
todo seu, Emma... Oh, desculpe, é todo meu! [risos].
sexta-feira, julho 06, 2018
Boas Maneiras
Para ser um burguês elegante,
visite o museu dos massacrados,
arrote especiarias coloniais,
conheça a literatura dos esmaecidos.
Para ser um burguês elegante,
aprenda com os totens derrubados,
adore o blues e o jazz dos sofridos,
decore versos dos maltrapilhos,
tenha como bíblia a de um povo perseguido.
Para ser um burguês elegante,
defenda a exclusividade da entrada,
da venda e do consumo;
não invente, aproprie-se,
seja um bom curador de moribundos.
Samira Feldman Marzochi
04 de julho de 2018
quarta-feira, maio 23, 2018
Sobre Isso
Naquele dia, conversando com você, vi uma coisa dentro. Foi porque decidi
retirar as telhas, o forro, o reboco, os tijolos, o assoalho, e deixar só a
estrutura: a fundação, as colunas e as vigas. Ao suspender a fundação, eu vi. Mas curioso que, durante o trabalho, chamei de “mastro” o que
havia tomado por “viga”. Mastro é o eixo que sustenta as velas, e as velas
inflam a embarcação, fazem que ela deixe a condição de deriva e seja capaz de
orientar-se. Então, fiquei entre o desenho da casa e dos
barcos.
De fato, eu moro num barco, casas e barcos são equivalentes, e também
contêm armações que não podem ser suprimidas ao prejuízo de um desmoronamento.
Pensei no verbo manquer, em francês,
faltar. Il me manque quelque chose. Soa “mancar” em português, uma ausência que faz mancar sugere uma
estrutura que sustenta. Mas o que me ocorreu ontem, na escuridão da estrada,
e me impeliu a escrever, foi a imagem do que havia encontrado no fundo.
Era um líquido feio, pastoso, semelhante ao petróleo. E não me admira que
assim fosse, embora assombre e cause repulsa. O petróleo é combustível,
inflama, mas é também a concentração de todos os tempos orgânicos da Terra, tem
a idade da vida extinta, além de morta. Algo que não se sabe mais se é morte ou
vida e, ainda assim, pulsa. Todo o empenho da cultura talvez seja por tornar
essa coisa palatável, forjar um espaço de aceitação para ela que, em si, é o
horror.
Essa pasta pegajosa estava também no porão do barco, e queimada liberava
um cheiro desagradável misturado à maresia, ao pescado, ao suor dos corpos.
Enquanto as redes brilhavam e as águas ofuscavam a visão, havia o motor, o
tremor que emergia do subterrâneo, do fundo do mar e do solo. Um motor de “tantos
cavalos”, se diz. Como daquela vez em que percebi, ainda criança, na trilha da
fazenda, que o medo de galopar não vinha do galope, mas do desencontro entre a
minha vontade e a do animal, e, ao mesmo tempo, do encontro.
Chegando à cidade onde tudo flutua, não há como esquecer quem vive nas
ruas e passará a madrugada de inverno à deriva. Vidas mortas que deambulam nuas,
sem velas, numa fantasia invisível, como essa que eu visto e me esconde sob o
jeans e o cachecol. Foi importante encarar essa coisa dentro, ao menos uma
parte dela. Não é fácil ver tudo porque o desmonte é doloroso e não basta. É
preciso sustentar o olhar, em exame, e ir de encontro à cultura.
O palácio de colunas em forma de mulheres, em que cada uma inaugura um
salão, como se fora o único, entre águas deslizando em mosaicos e drenadas por delicados
canais, a Alhambra de um sonho, é só a parte mais sólida e monumental de todas
as camadas interiores. Não foi preciso destruir nada, definitivamente, e eu não
o faria. Apenas desmontar e montar outra vez, na trilha da fazenda.
Lua Arroyo
São Paulo, 23 de maio de 2018
sexta-feira, março 16, 2018
Tânia Schneider: O Continente Negro da Linguagem
Entrevista por Tomás Leonel
Professora Tânia, você acaba de lançar um
livro muito bem recebido pela crítica intitulado “O Continente Negro da
Linguagem” no qual, dizem seus leitores, “a Mulher é finalmente descoberta”.
Como você conseguiu algo que nem Freud, nem Lacan, até o fim de suas vidas,
conseguiram?
É muito simples,
não escrevo nada que estes autores já não tenham dito de diferentes maneiras, tampouco
os questiono. Meu trabalho é uma confirmação das teorias sociais
preexistentes. Mas lanço mão da literatura nacional, dos poemas, romances e
canções populares, como material de análise para desvelar a “mulher”. Os
leitores se impressionam porque os poemas são líricos, comoventes, e são apresentados
no livro de modo a sugerir uma outra interpretação de textos que lhes
são familiares. Além disso, o tema contribui, e estes críticos, aos quais você se refere, são meus
amigos; é natural que eles me sobrevalorizem.
E o que diz a literatura sobre a Mulher?
No campo
literário, os escritos sobre as “mulheres” dizem muito mais sobre aqueles que
escrevem sobre elas. Por isso é possível afirmar que, embora “a mulher” seja
meu tema, escrevo, na verdade, sobre o inconsciente. Meu objeto, em última instância, não é “a
mulher”. Quando releio Machado de Assis, por exemplo, tomo Capitu como o
inconsciente de Bentinho. Tudo o que Bentinho vê em Capitu, sem dar-se conta, é
ele mesmo. Capitu oferece uma espécie de massa de modelar para o inconsciente de Bentinho que a
faz tomar a forma de seu desejo. O desejo de traição, por exemplo, de
obliquidade, de desvio, é dele. Capitu encarna uma história passível de ser
narrada, um enredo a ser vivido. Daí concluo que, tal como o inconsciente, a
“mulher se estrutura como linguagem”.
Mas isso valeria apenas para o campo
literário?
De modo algum.
Estas representações literárias se enraízam na cultura, elas apenas têm força
porque encontram lugar na vida cotidiana. A diferença é que a literatura é
capaz de conservá-las como memória coletiva, mas a mesma análise
poderia ser feita sobre a fala diária das pessoas.
Você, então, concordaria com a frase “a
mulher não existe”?
É sempre
delicado trabalhar com teoria em ambientes que abandonaram a curiosidade
científica ou a paixão pelas ideias e se renderam à militância. Há a sensação
de que o pensamento não é mais possível. Esta frase, por exemplo, pode ser
absolutamente mal interpretada se for tomada "ao pé da letra". Pior
ainda se eu quiser complementá-la com outra: “se a mulher existisse, não seria
mulher”. Em um ambiente machista e ignorante, a afirmação pode realmente soar
como autorização ao feminicídio, mas é claro que não se trata disso. O que quero dizer é que a demarcação do que seja “a mulher” é cultural, está no plano
das representações. E a representação da “mulher” opera, ao menos nas culturas
ocidentais, desde as “musas”, como projeção do desejo. Embora eu não diga o mesmo que Lacan, autor da frase, busco mostrar que a "mulher" não existe porque não é uma substância, uma essência, um dado natural que, necessariamente, engloba todas as pessoas que nasceram sem pênis. Sei que partir do pressuposto de que existe esta substância comum é uma necessidade dos movimentos feministas, caso contrário, não poderiam falar pelas "mulheres". Mas, todos sabemos que, empiricamente, não há unidade entre estes indivíduos e nem todos se identificam com os lugares sociais destinados às "mulheres", mesmo sendo heterossexuais, pois são lugares demarcados pelo desejo e olhar de outro que elas incorporam como se fossem os seus. Por isso não posso partilhar da ideia de que a mulher esteja no "real", fora da linguagem. O que há no real são indivíduos singulares, enquanto a mulher é uma categoria, um discurso, está no plano do simbólico e, portanto, do inconsciente. O mesmo valeria para os "homens". Por que não?
A mulher estaria mais para “continente” ou
“buraco negro”?
Você deve estar
se referindo à entrevista anterior (risos). Neste caso, a mulher está mais para
“continente” porque, como representação, ela ocupa um lugar preciso nos mapas
de orientação das condutas. A “musa”, a “fada”, a “ninfa”, a “virgem pura”, a “feiticeira”,
mesmo a “bruxa”, são referências fortes para a explicação e justificação de
certas atitudes, escolhas, paixões. Elas aparecem de diversas maneiras na
mitologia do ocidente. No entanto, quando os indivíduos se permitem subsumir
pelas representações, elas funcionam como um “buraco negro” realmente. Esta seria a
diferença entre “apropriação” e “incorporação”. Quando nos apropriamos das
representações, elas nos servem de orientação; quando as incorporamos, somos
comandados por elas.
E de onde vem todo esse poder feminino?
Precisamente do
fato de que as mulheres não existem. A imagem da mulher nunca se encaixa
perfeitamente nas mulheres reais e é essa inconsistência, essa contradição, que
assegura seu poder encantatório. Se há alguma descoberta em meu livro, é a de que o encanto, o poder simbólico, emana sempre de um descompasso, de um vão entre a
representação e o real. É por esta ausência que os milagres acontecem. A "mulher" como tema e o inconsciente como objeto me permitem compreender o mecanismo pelo qual o mundo simbólico produz, sobre nós, efeito de realidade.
terça-feira, agosto 01, 2017
Gênero e amor extraterreno: um novo campo de estudos etnográficos
Entrevista
com Robert Martius
Por Dália Dantas
Robert Martius, antropólogo
internacionalmente reconhecido da área de estudos de gênero e tecnologia,
desbrava um novo e denso campo de pesquisas: o das relações amorosas entre
humanos e seres extraterrenos. Professor em Harvard, teve sua formação na Universidade
de Auckland, Nova Zelândia, e no CNRS, em Paris. Suas pesquisas etnográficas
dividiram-se, inicialmente, entre as comunidades andinas e de cientistas da
Nasa. Recebeu, em junho, o prêmio Rockefeller da categoria “Pioneiros da
Ciência”, mas se recusa a proferir conferências para as quais recebe
incessantes convites, sob o argumento de que as palestras são formas autoritárias
de divulgação científica. Segundo Martius, “ninguém mais escuta aqueles que nos
tomam como interlocutor genérico”. Inspirado nos antigos filósofos, prefere o
diálogo e pouco se preocupa com a produção bibliográfica. Nunca publicou livros
ou artigos, senão as notas de aulas organizadas por seus orientandos e as inúmeras
entrevistas concedidas, exclusivamente, de modo presencial.
Dantas – Professor Martius, em
primeiro lugar agradeço imensamente sua gentileza em conceder esta entrevista.
Gostaria de começar perguntando sobre seu percurso intelectual. Das comunidades
andinas, passando pelos cientistas da Nasa, como foi a jornada até a etnografia
das relações amorosas, especialmente de cunho sexual, com extraterrestres?
Martius – Dalia, sou eu quem
agradece. Você sabe que é nestes momentos, em diálogo, que produzo de fato
conhecimento. A verdade é que sou um empirista da palavra e levo muito a sério
a metodologia científica. Comecei pesquisando a relação da população de Nazca
com os famosos geoglifos. Minha intenção não era solucionar o mistério sobre
eles, mas entender o que representavam para a população local. A partir daí, fiz uma comparação entre os
relatos dos peruanos daquela localidade com as narrativas de cientistas da Nasa
sobre o que significava, para eles, as imagens da Terra tomadas por satélites.
Descobri que, nos dois casos, no momento em que falavam sobre os desenhos de
Nazca ou sobre as imagens da Terra, assumiam uma perspectiva extraterrena que
também fazia parte de suas vidas cotidianas, como se estes deslocamentos os
fizessem sofrer uma transmutação existencial, um alargamento subjetivo.
Dantas – E como chegou à pesquisa
sobre relações sexuais extraterrenas?
Martius – Daí foi um passo.
Interessaram-me, posteriormente, os grupos de ufólogos de Goiás, região
central do continente sul-americano. Entre tantos relatos interessantes, chamaram-me
atenção as narrativas sobre relações sexuais com extraterrestres. Esforcei-me, então, para estabelecer
vínculos entre minhas conclusões anteriores e estes novos estudos etnográficos,
e descobri que o alargamento subjetivo estava também presente, porém de modo
ainda mais claro. Este ponto virtual, em que se colocam os habitantes da região
de Nazca ou os cientistas da Nasa, para observar a Terra, era a perspectiva da
auto-observação afetiva. Digamos que este ponto, que é um “outro” imaginário
construído para o deslocamento da perspectiva, seja passível de enamoramento.
Dantas – Então, estas relações sexuais não eram
verdadeiras, mas imaginárias?
Martius – Elas eram tão verdadeiras
quanto todas as relações. Mas, o que me interessava, era a narrativa sobre elas.
Dantas – E como eram?
Martius – Eram exatamente narrativas sobre deslocamentos de perspectiva amorosos. Das dezenas de questionários que apliquei
entre pessoas indicadas pela comunidade de ufólogos de Goiás, 90% relataram que
estas relações se deram de forma passiva, sem agitação de corpos ou mesmo com
pouca ou nenhuma aproximação física. Eram, em 70% dos casos, mediadas por instrumentos
tecnológicos desconhecidos que produziam ou não algum tipo de som. Em 97%, eram
os terráqueos que se deitavam enquanto os extraterrestres se punham em pé. E,
repare: em 100% das respostas, havia alguma associação entre o “olhar” e o “orgasmo”.
Porém, quando o questionário perguntava como eram os olhos dos extraterrestres,
apenas 34% sabiam responder, pois o "olhar" era, sobretudo, uma sensação que se aproximava do sentimento de ser compreendido.
Dantas – Mas o que o faz entender
estas descrições como “relações sexuais”? Elas me soam mais como cirurgias.
Martius – Estes casos me foram trazidos
como “relações sexuais com extraterrestres”. Não fui eu quem os classificou
assim. Mas você intuiu bem, eram cirurgias. Estas pessoas entendiam o amor como
uma cirurgia do olhar. Algo que as revelava e produzia um bem-estar incomum,
uma profunda leveza. E mais: o que elas me descreviam não eram as relações em
sua dimensão real, corpórea, difícil de significar, mas as “sobre-relações”, aquela
dimensão do amor que paira como realidade de segunda ordem e que, esta sim,
estaria na dimensão da palavra.
Dantas – Foi então que partiu para as
discussões de gênero?
Martius – Sim, esta descoberta foi um
marco de minha entrada no campo de estudos de gênero. Todos os relatos, para
ser exato, 97% dos entrevistados, não identificaram nestas relações nenhum tipo
de gênero feminino ou masculino. Quando eu perguntava “você acha que fez amor
com um homem ou com uma mulher extraterrestre?”, 97% não sabiam responder. Mas
eram frequentes as narrativas sobre a sensação de estar sendo observado no bom
sentido, de ser reconhecido, e esta sensação se confundia com o sentimento
amoroso. Estes casos revelam que a diferença de gênero não era a condição do
amor, mas o reconhecimento, e que as diferenças de gênero apenas são diferenças
quando permitem este deslocamento do olhar sobre si a partir de um “outro”. Eis aí a chave para um novo entendimento do conceito de "gênero".
Dantas – Ao que parece, professor
Martius, seu objetivo é, no fim das contas, entender o amor.
Martius – Sempre é, Dália.
Provavelmente, é o seu também (risos).
sexta-feira, julho 21, 2017
Cidade
A multidão lembra o mar
que arrebata no fluxo das ruas,
invade a praia até o calçadão longínquo
e faz correr infinitamente.
A multidão lembra o mar,
gravidade constante, vibração fria
que ressoa no corpo como concha acústica,
a matéria da alma.
A multidão lembra o mar,
a grande asa que sobrevoa, draga,
e se fecha ao entardecer
com a sonolência das pombas.
Samira Marzochi,
São Paulo, 21/07/2017
quinta-feira, março 16, 2017
Objeto A: um fenômeno físico
Entrevista com Tânia Schneider
Por Tomás Leonel, para a Frincha
Professora Tânia, você acabou de lançar seu novo livro, pela
BlackBell, que já está na segunda edição, sobre a confluência entre a física e
a psicanálise para a exploração do “Objeto A”, conceito de Lacan. De que modo
surgiu a ideia de utilizar a física como metáfora para a compreensão de
fenômenos psicanalíticos?
Minha primeira formação foi em física, interessei-me depois
por sociologia e só então passei a estudar psicanálise que considero uma das
sínteses possíveis, e das mais interessantes, entre as diversas formas de
conhecimento. Meu livro Objeto A: um fenômeno físico se apropria da Segunda Lei
da Termodinâmica e da teoria da formação dos buracos negros para explicar o que
nos motiva, a razão pela qual sempre buscamos algo, fazemos certas escolhas, as
causas das nossas angústias, da sensação de perda, do desespero, do
pânico, das compulsões...
Seu livro tem sido considerado pouco rigoroso pelas escolas
de psicanálise. A que você atribui esta crítica?
É o preço que pagamos pela criatividade e pelo desapego. Meu
conceito de Objeto A, Objeto “Autre”, é, de fato, uma interpretação livre. Grosso
modo, para Lacan, o Objeto A não é o objeto que foi arrancado de nós, “a perda
do objeto” ou “o objeto perdido”, como em Freud, mas o “objeto da perda”, o que
pretendemos colocar no lugar do que perdemos. Isso tem muito a ver com a noção
de Entropia, com a ideia de que tudo o que existe tende à desorganização
estrutural e ao desaparecimento. Os buracos negros seriam a realização desta
lei levada ao paroxismo. As estrelas nascem e morrem inevitavelmente. É como se
tudo o que existisse, por estar destinado à autodestruição, contivesse em si um
buraco negro virtual por onde a existência escoa. Assim acontece com as
pessoas. Estamos fadados à morte, tanto orgânica quanto social, temos essa
percepção desde que nascemos e então buscamos evitar o nosso desaparecimento
tentando vedar nossos buracos negros com “objetos” fora de nós que virtualmente
se encaixem neles. Por isso o que desejamos pode variar ao longo da vida, e
entre as diferentes pessoas, porque muda a nossa percepção deste “buraco”. O
importante é considerar que esta motivação nos direciona, confere sentido às
nossas ações, e quando sentimos que não estamos no caminho certo do encontro
destes objetos, surge a angústia, a compulsão ou o pânico, a certeza de que
estamos apenas vazando, perdendo-nos, e de que nada fazemos para impedir o fim.
Trata-se da “pulsão de vida” contra a “pulsão de morte”, de
Freud?
De certo modo, sim, refiro-me à tensão entre a tendência à
desorganização irreversível dos sistemas físicos e o esforço que faz o “Demônio
de Maxwell” para evitar a Entropia; entre a pulsão de vida e a de morte, se
assim preferir. O fato é que todo o nosso empenho é pela sobrevivência, pela
perpetuação. Trabalho, filhos, amores, projetos, consumo, identidade, tudo pode
estar no pacote do que poderia estancar este furo por onde a vida se vai. O
barato é que, por sermos humanos, vamos além da simples reprodução orgânica,
nossas metas são definidas pelas experiências culturais, a começar pela herança
familiar, pelas instituições escolares, pelo tipo de sociabilidade, pelas
exigências profissionais e afetivas.
Então, o Objeto A não é o “objeto de desejo”, como se costuma
pensar?
Esta afirmação talvez não seja precisa, assim como aquela
que diz que o Objeto A é a causa do desejo. A rigor, a causa do desejo é o furo e não o objeto. O que desejamos
urgentemente é lacrar, com todas as nossas forças, este verdadeiro rombo
existencial. É neste projeto que depositamos a maior parte de nossa energia
física e psíquica. Embora não seja o objeto de desejo ou o desejo de desejar, o
Objeto A se relaciona estreitamente com a questão do desejo, mas de outra
maneira: como desejo de ser desejado, de
ser querido, o desejo de que os outros desejem que sobrevivamos, que
continuemos vivos. O desejo de ser amado seria, como na expressão italiana “io
te voglio bene”, o desejo de ser querido bem, inteiro, sem avarias e perdas,
intacto, integral, como viemos ao mundo. Por isso as experiências consideradas
boas podem trazer a sensação de renascimento ou de reencontro com uma suposta
“verdadeira” identidade.
Isso explicaria, por exemplo, as paixões obsessivas?
Certamente. As obsessões por alguém, pelo dinheiro ou por um
time de futebol, por exemplo, resultam de uma projeção fixada, quando o buraco
que se tem não muda de forma ao longo da vida, como seria saudável que
ocorresse. Sendo uma projeção possível em infinitos elementos, o Objeto A não
precisa ter uma forma única porque nosso buraco negro também não tem. O
sujeito imagina que sem aquela pessoa, dinheiro ou bandeira, não sobreviverá,
deixará de existir, pois não conseguiria bloquear seu furo e estancar a
sangria. Por isso o Objeto A pode ser também compreendido como um espelho que
omite a falta, que representa a nossa integridade, uma vez que "Sujeito + Objeto A" resultam no que seria idêntico a nós mesmos (Sujeito + Objeto A = Identidade). O que muitas vezes parece vaidade, fanatismo, orgulho, obsessão,
pode ser a luta desmedida e desesperada pela sobrevivência.
Mas é uma patologia...
Sim, quando esta luta se transforma em doença, precisa ser
tratada.
Como seria o tratamento?
O ponto de equilíbrio é próprio de cada um e há múltiplos percursos até ele, mas talvez seja necessário fazer como os sábios: naturalizar o fim.
Como seria o tratamento?
O ponto de equilíbrio é próprio de cada um e há múltiplos percursos até ele, mas talvez seja necessário fazer como os sábios: naturalizar o fim.
O objeto A é, então, uma rolha?
Sim, é isso (risos). Mas não é só, tem suas implicações,
como vimos, e, além do mais, nunca consegue cumprir esta função.
E os animais, também perseguem o Objeto A?
De algum modo, é verdade, eles também buscam afeto, reprodução e
alimento, sobrevivência, também desejam se sentir desejados. Mas, para estudá-los, precisamos ultrapassar o campo da linguagem que é central para a compreensão da
subjetividade nas ciências humanas. Isto é, precisamos alargar nossa concepção
de subjetividade em direção a algo que inclua, também, a comunicação não verbal.
Isso é possível?
Ainda não sei, será o desafio de meu próximo livro.
sexta-feira, junho 17, 2016
Análise
Queria fazer
o que você faz:
abrir uma
porta e realmente instituir
uma
passagem;
fechá-la e separar universos.
Ter, numa
parede, uma divisória real
capaz de decantar
as palavras
das vozes.
O problema é
que embaralho tudo:
uma porta
que bate, de súbito,
projeta uma
paisagem.
Os cortes no
espaço, de fato, desnudam,
como secções
na carne de um peixe,
mas não de
um jeito que permita suturar.
Faço, dos
lugares, cômodos sem piso
e sem
limites
onde o que
há e o que não existe
flutuam de
igual modo involuntário.
Além de mim
e de você
todo o resto
é a decoração de um aquário.
sábado, junho 20, 2015
A Economia dos Sonhos
Conta um mito ameríndio das ilhotas do grande Rio Amazonas, registrado em diário do século XVII pelo português marrano José Oliveira, - mascate que se enraizou no norte brasileiro casando-se com Poti e Maria Amélia e deixando dezenas de filhos, entre os quais três padres, uma feiticeira, uma guerreira tupi e um terrível capitão do mato, - que o sonho era um deus chamado Tibiquera. Dorminhoco numa terra sem males situada a oeste do Rio, este sentinela invertido despertava apenas para tirar dos sonhadores o tempo de vida que davam em troca do conteúdo que ele sonhava. Dotado do poder de inventar enredos oníricos, Tibiquera não poderia fazê-lo a partir do nada, e então usava a vida dos homens como material para produzir as imagens dos sonhos. Era assim que, no sonho, o cotidiano aparecia engraçado, Tibiquera mudava todas as ordens, o que era impossível acontecia e o que era absurdo podia existir. Mas ocorreu certa vez que, segundo José Oliveira, a população daquelas ilhas se aborreceu com as cobranças exageradas deste deus. Logo após a chegada de portugueses e franceses que trouxeram artefatos diversos aos índios e lhes contaram muitas histórias, uma grande parte da aldeia foi acometida de sono e delírios, encontrando o fim precoce de seu tempo neste mundo. O pajé atribuiu as mortes ao excesso de sonho que tinha de ser necessariamente trocado pelo tempo de vida exigido por Tibiquera. Desde então, a aldeia é regida por uma lei superior: para não se deixar consumir pela imaginação, tornou-se proibido sonhar sozinho, pois sonhando junto os mesmos sonhos, o tempo de vida seria também partilhado. É possível ainda hoje observar que na aldeia de José Oliveira, agora uma vila nomeada Oliviana, composta de seis pequenas ilhas interligadas por pontes que formam no mapa uma estrela, todos dormem de mãos dadas.
Samira Feldman Marzochi,
"A Economia dos Sonhos” em Mitos Inventados.
terça-feira, junho 16, 2015
Os ideais e os sonhos
A gente, em geral, mistura "sonhador" com "idealista". Mas tem diferença. Conheci muitos sonhadores céticos e muitos idealistas sem imaginação. Reparando bem, os sonhadores têm maior potencial para o idealismo que os idealistas para o sonho. Porque o idealismo a gente aprende por formação e cultura, já o sonho é muito original da pessoa. Um sujeito sonhador e idealista é uma existência completa. Só duas coisas podem tirar a felicidade dele: a fome e a dor. Sou idealista quanto à possibilidade de plantar a utopia nos sonhadores. Já o sonho nos idealistas... Como disse, o idealismo a gente aprende e o que a gente aprende pode ser desaprendido quando a situação não é favorável. Mas o sonho é uma doença romântica no sentido de algo que acomete o indivíduo, não uma capa que se veste. Deixo, então, este bilhetinho aos sonhadores.
Samira Feldman Marzochi, 15/06/2015
CONVERSA NA COZINHA
Pequena lagartixa, mal sabes
que gente não gosta de bichos
que rastejam.
Nasceste não faz muito,
vê-se pelos olhos ainda atentos.
Nem comeste o primeiro inseto,
tão pura pareces,
incapaz de hipnotizar outra presa.
Não conheço nada do teu ciclo de vida
e menos sei do meu
de vida sentimental.
Ajoelho-me ao pé da porta
para falar-te,
abrir meu coração descompassado.
Se tens aquela sintonia zen dos sapos
capaz de deixar tudo em suspenso,
talvez eu aprenda um pouco.
Embora recém-nascida, és orgânica
e também quero ser.
Ensina-me a esquecer, Pequena,
que a gente não gosta
dos bichos que rastejam?
Mesmo assim, fico tentada
a escrever-te um poema...
Samira Feldman Marzochi
Barão Geraldo, 19 de março de 2005
que gente não gosta de bichos
que rastejam.
Nasceste não faz muito,
vê-se pelos olhos ainda atentos.
Nem comeste o primeiro inseto,
tão pura pareces,
incapaz de hipnotizar outra presa.
Não conheço nada do teu ciclo de vida
e menos sei do meu
de vida sentimental.
Ajoelho-me ao pé da porta
para falar-te,
abrir meu coração descompassado.
Se tens aquela sintonia zen dos sapos
capaz de deixar tudo em suspenso,
talvez eu aprenda um pouco.
Embora recém-nascida, és orgânica
e também quero ser.
Ensina-me a esquecer, Pequena,
que a gente não gosta
dos bichos que rastejam?
Mesmo assim, fico tentada
a escrever-te um poema...
Samira Feldman Marzochi
Barão Geraldo, 19 de março de 2005
quinta-feira, maio 28, 2015
Sentido Único
Metrô lotado e cada um é um só.
Quem imaginava que, ao inventar as gentes,
criaria tantas histórias sentidas?
Adivinhar ou planejar isso é muito mais
que criar a vida na Terra.
E olha que não acredito em entidade fundadora,
mas me espanto ao reconhecer:
gente é história sentida.
Tenho vontade de gritar:
"Bonjour, messieurs dames!"
Mas quem sou eu?
Não tenho a autenticidade dos loucos de rua.
Quem sou eu para dar bênçãos
às histórias sentidas de cada um neste vagão
e nos outros vagões lotados desta linha
que cruza as pedras da cidade?
A ideia me comoveu, tudo é ideia que comove
e nada seria se não fosse.
Desisto de enlouquecer e permaneço,
como cada um, em sentido único,
na vastidão do pequeno trecho
até a próxima estação.
Samira Feldman Marzochi
Ana Rosa - Tietê
Manhã, 28/05/2015
terça-feira, maio 19, 2015
Sentimento Puro
Não sei de onde vem minha autoestima. Não tenho senso de localização, nem sei matemática. Isto é, nas duas categorias básicas do entendimento humano, espaço e tempo, sou deficitária. Meu corpo, então, não compensa. O rosto é bonitinho, embora a testa cresça. Em contrapartida, a perda progressiva dos seios e nádegas acompanhada do abdômen que adquire o aspecto de uma pequena calota, conforma uma espécie de ser extraterreno. Outro dia, à meia-luz, enquanto vestia o pijama, vi no espelho um E.T. branco e compacto, desses de filme. Simpático até. Era eu. Eu vim de um planeta sem espaço e sem tempo. Tudo lá é sentimento puro.
Dani Lopes, Geração Star Trek, p.29
segunda-feira, fevereiro 16, 2015
Lapis Lazuli
Em uma cultura muito antiga, sem nome conhecido, da região
que posteriormente fora conquistada pelos nabateus, havia um mito, de registro
encontrado na Suméria pelos gregos e depois traduzido pelos mouros da Península
Ibérica, que explicava o, digamos, interesse afetivo. Todos os indivíduos
nasceriam com uma entidade semiautônoma e invisível aos seres humanos, ligada à
espinha dorsal, que poderia ou não subdividir-se em um bom número. Estas
entidades, ressentidas por terem nascido nuas, amorfas e invisíveis, tenderiam a
procurar corpos de outras pessoas para se vestirem deles, sem nenhuma espécie
de consulta ou consentimento. Os indivíduos, deste modo, poderiam reconhecer em
outros essências muito particulares, ligando-se a estes de modo recíproco ou
desencontrado. Por isso, os sábios desta cultura ensinavam a desfazer os
encantos afetivos malogrados batendo duas pedras azuis, uma contra a outra, a fim
de romper o cordão que prendia a entidade, até que uma nova, após semanas ou
meses, crescesse novamente. Contudo, o procedimento não poderia ser refeito
mais de sete vezes, pois a entidade, que não tinha mais que sete vidas,
vestir-se-ia, definitivamente, do corpo que lhe deu origem.
Samira Feldman Marzochi, Mitos Inventados.
sexta-feira, fevereiro 04, 2011
A PAPUTANGA
(...) A Paputanga dá em árvore aparentada da seringueira e, por isso, ao toque do fruto redondo que ocupa, em geral, uma palma de mão, sentimos um grande prazer tátil. Nem sequer podemos dizer que haja pele propriamente, muito menos uma casca distinta da carne que vai, ao contrário da maioria das frutas, amolecendo-se em direção ao centro onde se encontra o suco.
Seu perfume pouco se percebe até que damos a primeira dentada. Exala no romper dos gomos um cheiro profundo de planta verde mesclado a alguma espécie de chá familiar que não sabemos se vem de uma flor ou de uma folha. Ao fundo, uma nota seca, nada cansativa.
A textura é tão diferente que se nos dissessem os nativos que esta fruta caiu do céu e aqui se multiplicou, creríamos. Embora seja feita de um tecido denso, ao contato com a língua os nacos se dissolvem, sensíveis à saliva ou à temperatura da boca.
As cores e os sabores da Paputanga variam conforme as estações, mas em todas elas o fruto é sempre bom. No inverno, tem a cor do pêssego, com manchas acinzentadas. No verão, é vermelha, com tintas cor-de-laranja. Na primavera, é uniformemente cor-de-rosa e, no outono, é de um verde-musgo que evolui ao azul-marinho.
Passei a coletar e pintar sobre a mesma tela estas frutas em suas diferentes fases. Como os nativos jamais as vêem juntas, em cores diversas, uma vez que não há como conservá-las durante um ano inteiro, batizaram minha natureza morta de “tempos que não morrem”.
Embora o perfume da Paputanga não varie, os sabores se alternam em quatro estágios: na primavera, tem um gosto ensolarado à primeira mordida e, ao final, quando escorre o sumo de seu interior, é possível sentir algo do néctar das flores com que os pássaros-besouro matam a sede.
No verão, há qualquer coisa de alga marinha, um grão de sal bem distante que faz os sentidos se alterarem e produzirem na fronte a sensação de uma brisa úmida, como esta que vem do Atlântico, das correntes frias.
No outono, uma substância próxima da cafeína se sintetiza no fruto que sem ele não nos levantamos pela manhã. Em dias tristes, a Paputanga é um remédio que elimina todo o pensamento ruim. Tem o sabor das folhas secas maceradas em calda, levemente amadeirado, similar à noz moscada ou à canela.
No inverno, esta marca arbórea persiste, mas se diferencia em paladar achocolatado, não do cacau exatamente, mas do tabaco.
Os tamanhos, em cada estação, se transformam. As frutas crescem mais no verão, quando são suculentas, e, aos poucos, vão perdendo até um terço do volume, no inverno, quando se tornam cremosas (...).
Extrato de Bartolomeu Dantas, A invenção da felicidade, Editora Tocco, 1958, p.29.
Criação de Samira Feldman Marzochi
sábado, junho 12, 2010
Anti-semitismo: racismo politicamente correto?
Entrevista com Mirna Schatz/Anastácia Ferraz
por Ivana Mikva
Mikva - Você lançou seu primeiro livro nos Estados Unidos, em 1999, A morte do espírito (The death of the spirit, Ed. BlackBell), que chamou atenção da crítica pela ponderação e justeza das análises, em que aponta os principais limites ao desenvolvimento da reflexão filosófica no mundo contemporâneo. Por isso nos intriga tanto sua atitude radical mais recente. Por que você decidiu abandonar a herança judaica, trocar seu nome para Anastácia Ferraz e se iniciar no Candomblé?
Ferraz - Como Mirna Schatz passei a sentir-me, no plano do pensamento, alguém que anda invariavelmente em círculos ao tentar responder questões atuais importantes. Meu livro reflete esta angústia. Solicitavam-me sempre análises e posicionamentos sobre as questões israelo-palestinas. Por causa de minha história familiar, era tentada a envolver-me no debate. Mas, sobre este tema, jamais encontrava o equilíbrio ou uma direção para desenvolver o pensamento. Entre familiares, situava-me contra Israel; entre o público, a favor. Se atacava Israel juntando-me ao público, sentia-me cínica, como se lavasse as mãos em relação a algo que me comprometia e de que muito pouco tinha conhecimento para sugerir soluções concretas e responsáveis. Se defendia Israel junto ao público, sentia-me, com muito pesar, indiferente à questão Palestina. Enfim, minha profissão, a de filosofar sobre problemas sociais, políticos, culturais, tornou-se impraticável. Era impossível formular, rigorosamente, uma tese sobre o assunto. Sei, por um lado, o quanto a defesa da causa palestina pode implicar a ignorância dos objetivos declarados pelo Hamas e outros grupos, o que coloca não só o Estado de Israel, mas todos os judeus do mundo, numa cilada. Por outro lado, identifico-me com a dor dos palestinos e sua revolta alimentada pelas práticas sistemáticas dos governos israelenses. Isto tudo se tornou pesado demais. Ciente destas limitações, entrei em depressão, fiz um câncer, desejei livrar-me de mim. Estava no fundo do poço quando tive um insight. Percebi que não me faltavam elementos teóricos para ser capaz de abandonar-me, deixar de ser eu como quem despe uma pele e veste outra. Não me faltaria imaginação para inventar uma nova identidade. Tornei-me Anastácia Ferraz. Não se tratou, portanto, de uma fuga, como poderia ser um suicídio. Estou aqui, presente, ativa, criadora e criatura. Acreditei mais em mim que nas imagens que me eram impressas.
Mikva - Mas isto, de certo modo, não é fugir de um posicionamento político?
Ferraz - O problema é que, como disse, eu não tinha um posicionamento político verdadeiro. Eram sempre sentimentos e razões incongruentes que se manifestavam. Decidi que, ou eu mergulharia no problema tornando-me uma especialista, ou deveria deixar de ser eu. Percebi que a primeira escolha seria mais arriscada. Eu poderia apenas aumentar meu conhecimento sem conseguir ordená-lo. Os intelectuais não têm dores de cabeça à toa. Eles são constantemente policiados por eles mesmos e por seus pares. As palavras saem de suas bocas como massa que se desdobra, ganha autonomia, atinge ou se isola, torna-se cruel ou ridícula. Deixando de ser Mirna, penso como quem voa, pega ondas, faz manobras, jamais com pretensão de acertar. A fala de Anastácia não é um objeto cortante; tem a textura da vida, é algo que se mistura às coisas, às pessoas, às cores do dia e da noite, aos elementos da cultura e da natureza. Assim pude recondicionar meu pensamento, distanciando-me do que antes era próximo demais.
Mikva - O anti-semitismo venceu dentro de você?
Ferraz - (Silêncio). Esta pergunta é realmente difícil. O anti-semitismo estava me vencendo ao aprisionar minha percepção das coisas. Então, decidi vencer-me, vencer quem o anti-semitismo estava derrotando. Se eu continuasse Mirna, jamais me livraria dele. Não queria mais ver o mundo dividido entre judeus e não-judeus. Para mim, isto sim seria uma derrota intelectual e moral. Queria ter o olhar livre de quem parte de outro paradigma: politeísta e não-ocidental. Por isso o Candomblé. Eu não poderia adotar uma religião cristã ou islâmica que se apropriasse das criações judaicas de um deus único, de seus profetas e de seus textos, para negar os hebreus. Como se sabe, toda a civilização judaico-cristã-islâmica, em sua base moral e religiosa, divide o mundo entre judeus e não-judeus.
Mikva – Não será isso o mesmo que auto-exilar-se, viver como foragida?
Ferraz - Eu vivia, sim, como foragida; carregava a culpa de crimes que não cometi; o tempo todo media palavras, eufemizava, para não trair ninguém. E você, também não tem a sensação de esconder-se?
Mikva - Não pensou em resolver isso com análise?
Ferraz - Cansei de soluções convenientes e discretas dentro de um suposto “possível” que, em si, é estruturalmente inviável. Parti para um projeto novo, radical, precisei experimentar isso. Mudar é um projeto; não significa que terei êxito. Adotar outra perspectiva já é viver a transformação. Desejo me orientar pela transcendência, mesmo que Anastácia jamais se realize completamente, assim como Mirna nunca se realizou. Anastácia será sempre um horizonte, um além-mar.
Mikva - Às vezes penso que o anti-semitismo talvez seja o único racismo “politicamente correto”. O que se diz hoje dos “judeus”, que eles são muito ricos e controlam tudo, é o mesmo que se dizia na Alemanha nazista. Há professores ensinando isso nas escolas, intelectuais bem formados argumentando coisas deste tipo em discussões públicas.
Ferraz - Este é outro ponto problemático. Ir contra o anti-semitismo hoje, inclusive no Brasil, não é, de fato, partilhar de uma mesma moralidade dita “politicamente correta”. Os judeus não são mais lembrados nas discussões sobre o racismo como ainda eram até os anos 60. É como se a questão estivesse resolvida. Não está. Há sempre um anti-semitismo marolando no ar. É um racismo que exalta os judeus. O senso comum espera que os judeus dêem mais que recebam, como se fossem moralmente superiores, como se tivessem realmente mais para dar que os outros, como se fossem destinados ao sacrifício. Jesus caiu nesta armadilha. Os judeus se apropriam destas representações e, assim, dão-lhes mais força. Um dos resultados, por exemplo, é chamar de “holocausto”, isto é, “sacrifício”, o genocídio contra os judeus. Mesmo as generalizações sobre a “inteligência” ou a “esperteza” dos judeus são um preconceito racista, pois pressupõem que eles sejam ameaçadores. Até pessoas muito cultas sustentam a clássica idéia (sem qualquer comprovação empírica) de que os judeus são unidos e se protegem mutuamente. A história mostra de forma objetiva que não é nada disso. Seis milhões morreram na Guerra, muitos escaparam, vários receberam ajuda de não-judeus, vários trabalharam para a SS. Os judeus são simplesmente iguais a todo o mundo, e isto não deve soar como um pecado.
Mikva – Ao entrar no Candomblé, não se deparou com outro tipo de racismo?
Ferraz - Sim, mas aí tenho companhia para pensá-lo. Os afro-brasileiros chamam de racismo o que sofrem, enquanto os judeus não admitem para eles mesmos que são vistos como “raça”, como etnia que guarda características particulares e que este é um pensamento racista sobre os judeus. Chamam de “anti-semitismo”, mas “semitas” são todos os árabes, é um termo que não diz muita coisa.
Mikva - E por que não tentou mobilizar as comunidades judaicas contra o racismo?
Ferraz - Ora, se as “raças” não existem na realidade, eu não preciso mobilizar “os judeus”, apenas participar de qualquer grupo que lute contra o racismo. O importante é ir contra o conceito de “raça” que é uma construção coletiva racista, independente da identidade cultural que se possa adotar.
12 de junho de 2010
Criação de Samira Feldman Marzochi
por Ivana Mikva
Mikva - Você lançou seu primeiro livro nos Estados Unidos, em 1999, A morte do espírito (The death of the spirit, Ed. BlackBell), que chamou atenção da crítica pela ponderação e justeza das análises, em que aponta os principais limites ao desenvolvimento da reflexão filosófica no mundo contemporâneo. Por isso nos intriga tanto sua atitude radical mais recente. Por que você decidiu abandonar a herança judaica, trocar seu nome para Anastácia Ferraz e se iniciar no Candomblé?
Ferraz - Como Mirna Schatz passei a sentir-me, no plano do pensamento, alguém que anda invariavelmente em círculos ao tentar responder questões atuais importantes. Meu livro reflete esta angústia. Solicitavam-me sempre análises e posicionamentos sobre as questões israelo-palestinas. Por causa de minha história familiar, era tentada a envolver-me no debate. Mas, sobre este tema, jamais encontrava o equilíbrio ou uma direção para desenvolver o pensamento. Entre familiares, situava-me contra Israel; entre o público, a favor. Se atacava Israel juntando-me ao público, sentia-me cínica, como se lavasse as mãos em relação a algo que me comprometia e de que muito pouco tinha conhecimento para sugerir soluções concretas e responsáveis. Se defendia Israel junto ao público, sentia-me, com muito pesar, indiferente à questão Palestina. Enfim, minha profissão, a de filosofar sobre problemas sociais, políticos, culturais, tornou-se impraticável. Era impossível formular, rigorosamente, uma tese sobre o assunto. Sei, por um lado, o quanto a defesa da causa palestina pode implicar a ignorância dos objetivos declarados pelo Hamas e outros grupos, o que coloca não só o Estado de Israel, mas todos os judeus do mundo, numa cilada. Por outro lado, identifico-me com a dor dos palestinos e sua revolta alimentada pelas práticas sistemáticas dos governos israelenses. Isto tudo se tornou pesado demais. Ciente destas limitações, entrei em depressão, fiz um câncer, desejei livrar-me de mim. Estava no fundo do poço quando tive um insight. Percebi que não me faltavam elementos teóricos para ser capaz de abandonar-me, deixar de ser eu como quem despe uma pele e veste outra. Não me faltaria imaginação para inventar uma nova identidade. Tornei-me Anastácia Ferraz. Não se tratou, portanto, de uma fuga, como poderia ser um suicídio. Estou aqui, presente, ativa, criadora e criatura. Acreditei mais em mim que nas imagens que me eram impressas.
Mikva - Mas isto, de certo modo, não é fugir de um posicionamento político?
Ferraz - O problema é que, como disse, eu não tinha um posicionamento político verdadeiro. Eram sempre sentimentos e razões incongruentes que se manifestavam. Decidi que, ou eu mergulharia no problema tornando-me uma especialista, ou deveria deixar de ser eu. Percebi que a primeira escolha seria mais arriscada. Eu poderia apenas aumentar meu conhecimento sem conseguir ordená-lo. Os intelectuais não têm dores de cabeça à toa. Eles são constantemente policiados por eles mesmos e por seus pares. As palavras saem de suas bocas como massa que se desdobra, ganha autonomia, atinge ou se isola, torna-se cruel ou ridícula. Deixando de ser Mirna, penso como quem voa, pega ondas, faz manobras, jamais com pretensão de acertar. A fala de Anastácia não é um objeto cortante; tem a textura da vida, é algo que se mistura às coisas, às pessoas, às cores do dia e da noite, aos elementos da cultura e da natureza. Assim pude recondicionar meu pensamento, distanciando-me do que antes era próximo demais.
Mikva - O anti-semitismo venceu dentro de você?
Ferraz - (Silêncio). Esta pergunta é realmente difícil. O anti-semitismo estava me vencendo ao aprisionar minha percepção das coisas. Então, decidi vencer-me, vencer quem o anti-semitismo estava derrotando. Se eu continuasse Mirna, jamais me livraria dele. Não queria mais ver o mundo dividido entre judeus e não-judeus. Para mim, isto sim seria uma derrota intelectual e moral. Queria ter o olhar livre de quem parte de outro paradigma: politeísta e não-ocidental. Por isso o Candomblé. Eu não poderia adotar uma religião cristã ou islâmica que se apropriasse das criações judaicas de um deus único, de seus profetas e de seus textos, para negar os hebreus. Como se sabe, toda a civilização judaico-cristã-islâmica, em sua base moral e religiosa, divide o mundo entre judeus e não-judeus.
Mikva – Não será isso o mesmo que auto-exilar-se, viver como foragida?
Ferraz - Eu vivia, sim, como foragida; carregava a culpa de crimes que não cometi; o tempo todo media palavras, eufemizava, para não trair ninguém. E você, também não tem a sensação de esconder-se?
Mikva - Não pensou em resolver isso com análise?
Ferraz - Cansei de soluções convenientes e discretas dentro de um suposto “possível” que, em si, é estruturalmente inviável. Parti para um projeto novo, radical, precisei experimentar isso. Mudar é um projeto; não significa que terei êxito. Adotar outra perspectiva já é viver a transformação. Desejo me orientar pela transcendência, mesmo que Anastácia jamais se realize completamente, assim como Mirna nunca se realizou. Anastácia será sempre um horizonte, um além-mar.
Mikva - Às vezes penso que o anti-semitismo talvez seja o único racismo “politicamente correto”. O que se diz hoje dos “judeus”, que eles são muito ricos e controlam tudo, é o mesmo que se dizia na Alemanha nazista. Há professores ensinando isso nas escolas, intelectuais bem formados argumentando coisas deste tipo em discussões públicas.
Ferraz - Este é outro ponto problemático. Ir contra o anti-semitismo hoje, inclusive no Brasil, não é, de fato, partilhar de uma mesma moralidade dita “politicamente correta”. Os judeus não são mais lembrados nas discussões sobre o racismo como ainda eram até os anos 60. É como se a questão estivesse resolvida. Não está. Há sempre um anti-semitismo marolando no ar. É um racismo que exalta os judeus. O senso comum espera que os judeus dêem mais que recebam, como se fossem moralmente superiores, como se tivessem realmente mais para dar que os outros, como se fossem destinados ao sacrifício. Jesus caiu nesta armadilha. Os judeus se apropriam destas representações e, assim, dão-lhes mais força. Um dos resultados, por exemplo, é chamar de “holocausto”, isto é, “sacrifício”, o genocídio contra os judeus. Mesmo as generalizações sobre a “inteligência” ou a “esperteza” dos judeus são um preconceito racista, pois pressupõem que eles sejam ameaçadores. Até pessoas muito cultas sustentam a clássica idéia (sem qualquer comprovação empírica) de que os judeus são unidos e se protegem mutuamente. A história mostra de forma objetiva que não é nada disso. Seis milhões morreram na Guerra, muitos escaparam, vários receberam ajuda de não-judeus, vários trabalharam para a SS. Os judeus são simplesmente iguais a todo o mundo, e isto não deve soar como um pecado.
Mikva – Ao entrar no Candomblé, não se deparou com outro tipo de racismo?
Ferraz - Sim, mas aí tenho companhia para pensá-lo. Os afro-brasileiros chamam de racismo o que sofrem, enquanto os judeus não admitem para eles mesmos que são vistos como “raça”, como etnia que guarda características particulares e que este é um pensamento racista sobre os judeus. Chamam de “anti-semitismo”, mas “semitas” são todos os árabes, é um termo que não diz muita coisa.
Mikva - E por que não tentou mobilizar as comunidades judaicas contra o racismo?
Ferraz - Ora, se as “raças” não existem na realidade, eu não preciso mobilizar “os judeus”, apenas participar de qualquer grupo que lute contra o racismo. O importante é ir contra o conceito de “raça” que é uma construção coletiva racista, independente da identidade cultural que se possa adotar.
12 de junho de 2010
Criação de Samira Feldman Marzochi



















